sexta-feira, 31 de julho de 2009

A maquilhagem


Gostava de ver a minha mãe pôr pó-de-arroz nas maçãs do rosto e pintar os lábios com o batom carmim antes de sairmos, fazia-o com uma enorme satisfação que se notava nos sorrisos e poses que fazia para o espelho. Só se maquilhava quando saía sem o meu pai porque ele não gostava que ela se pintasse, se calhar porque tinha medo que a sua beleza encantasse os outros homens. Imagino que o meu pai quando começou a namorar com a minha mãe não lhe tenha dito nada, mas com o tempo foi impondo as suas vontades e ela foi cedendo até que deixou de se maquilhar nas saídas conjuntas, mas deixar definitivamente de se maquilhar, isso nunca o fez. Com o passar dos anos a minha mãe passou a fazer o que lhe apetecia e a não respeitar a vontade do meu pai em relação à maquilhagem, por isso, sempre que saía acompanhada ou não por ele o pó-de-arroz e o batom estavam sempre presentes.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

A hora do chocolate


Todos os meses ia com o meu pai comprar a comida para casa, aquela que se podia guardar, como o arroz, o azeite, a massa e muito mais. Íamos só uma vez por mês, por isso o que se comprava tinha que dar para esse período de tempo, o que nem sempre acontecia porque a minha mãe fazia desvios.


O meu pai antes de sair de casa fazia uma lista do que era necessário comprar e fazia-a todos os meses, o que era desnecessário porque todos os meses comprava as mesmas coisas. Eu gostava de o acompanhar, era eu que ia buscar às prateleiras o que ele ia lendo da lista e colocava no carrinho de compras. Geralmente íamos ao supermercado Invictos que ficava no Carvalhido, era um supermercado grande onde se podia comprar de tudo, mas o meu pai só comprava o que era necessário, a única excepção era a compra de um chocolate pequeno de marca Regina que comíamos em casa no fim da arrumação das compras que tinha o seu ritual.


Quando chegávamos a casa, a primeira coisa que eu fazia era retirar todas as compras dos sacos de plástico e colocá-las juntinhas no chão da sala de jantar, o meu pai sentado numa cadeira ao lado da mesa de jantar pegava na lista de compras escrita por ele e no talão do supermercado e recitava: “cinco quilos de arroz e o quilo é a dez escudos”, eu verificava o preço do arroz e dizia-lhe se coincidia com o valor que me tinha dito e depois separava os cinco pacotes de quilo do arroz do conjunto total das compras, iniciando assim um outro grupo de compras; entretanto o meu pai assinalava com uma lapiseira a parcela do talão de compras com um vê de visto que correspondia a correcto, passando para a parcela seguinte “quatro garrafas de óleo fula e cada garrafa custa quinze escudos” e eu repetia a mesma operação de verificação de preço, comunicação e separação, e assim continuávamos até à verificação final do talão de compras, seguindo-se a arrumação das compras numa espécie de sótão que o meu pai construiu na casa de banho, rebaixando o tecto. Para lá chegar o meu pai necessitava de abrir a escada que estava encostada à parede do lado direito quem entrava na casa de banho, mesmo ao lado do bidé. Já subido na escada, o meu pai ia pedindo as compras “…agora os seis pacotes de massa… agora as garrafas de azeite…” que ia colocando muito ordenadamente na espécie de sótão. Eu ia-lhe chegando as compras pela ordem que ele me ia pedindo até ao último pacote.


Terminada a tarefa, era chegada a hora do chocolate, o meu pai pegava no pequeno chocolate de marca Regina e dividia-o meticulosamente em quatro partes iguais, uma para ele, outra para mim, outra para a minha mãe e outra para a minha irmã. Eu comia o meu pequeno pedaço em dentadinhas e lambidelas pequeninas para que durasse muito, às vezes ainda comia mais um bocadinho porque a minha mãe prescindia da sua parte dividindo-a em dois pedacinhos que distribuía por mim e pela minha irmã.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

A minha avó


Quando nasci a minha avó paterna já tinha morrido, o meu pai tinha apenas catorze anos quando a mãe morreu de parto juntamente com o bebé. O meu pai era o segundo filho mais velho de seis e o mais próximo da mãe, era ele que a ajudava nas lides domésticas e com quem ela partilhava as suas inquietudes e a quem pedia conselhos, na ausência de um marido consumido pelo trabalho árduo de uma mina de volfrâmio e da lavra dos campos que nem sempre produziam o necessário para alimentar toda a família, por isso creio que terá sido muito difícil para ele aguentar aquela morte inesperada, tendo pouco tempo depois abandonado a casa paterna e partido para a grande cidade em busca de algo que preenchesse aquele espaço esvaziado que tanto doía, mal ele sabia que nunca iria ser capaz de o preencher, nem haveria mais ninguém que o fizesse da mesma forma que a minha avó.

terça-feira, 28 de julho de 2009

O saco amarelo


Enquanto não fui operada à garganta, quando tinha cinco anos, estava muitas vezes doente com febre e a minha mãe achava que eu tinha de permanecer na cama e não sair à rua. A única forma que ela tinha de conseguir que eu permanecesse na cama era deixar-me ir para a sua cama, que era a cama dos meus pais no quarto dos meus pais. Eu adorava estar naquela cama que era grande, alta e o colchão abanava, e naquele quarto que me era quase sempre vedado, excepto aos domingos quando ia ter com o meu pai à cama pela manhã quando acordava. Mas só a cama e o quarto não bastavam para me entreter durante todo o dia, a minha mãe dava-me então as fotografias da família que estavam todas dentro de um saco amarelo em cima do guarda-vestidos. Como eu gostava de as observar, passava horas a tirá-las e a metê-las no saco, a juntá-las umas com as outras como que a construir pequenas histórias com aquelas personagens que pouco ou nada conhecia. De tempos a tempos comia uma colherada de gema de ovo batida com açúcar que a minha mãe fazia sempre que eu tinha dores de garganta, e que não podia estar em cima da mesinha de cabeceira porque eu comia tudo de uma vez, por isso às vezes fazia de conta que me doía a garganta para que a minha mãe me desse mais uma colherzinha daquela mistura tão docinha. E quando me aborrecia de juntar e separar a família do saco amarelo, brincava com os livros e cadernos de quando a minha mãe andou na escola, não sabia ler mas gostava de ver as imagens. Quando a minha mãe ia a correr fazer algum recado e me deixava por breves instantes sozinha em casa, eu pulava rapidamente da cama e abria os gavetões da cómoda, só olhava, não mexia em nada para que a minha mãe não descobrisse que eu tinha andado em sítios proibidos.

domingo, 26 de julho de 2009

Queria desaparecer


Era habitual os meus pais estarem zangados na época do natal, não sei porque é que isso acontecia, mas era raro ocorrer o contrário. Apesar de não se falarem e dormirem em quartos separados, o que fazia com que eu e a minha irmã fossemos despejadas do nosso espaço para passar a ser ocupado pelo meu pai, os rituais natalícios tinham que ser cumpridos, exceptuando a troca de presentes que o meu pai nunca aprendeu a dar nem a receber, acabando por acontecer só entre mim, a minha irmã e a minha mãe às escondidas do meu pai para não termos que ouvir as suas terríveis críticas.


Na noite da consoada, às oito da noite, era obrigada a estar sentada à mesa da sala de jantar que se utilizava só em eventos especiais, em frente a uma televisão a preto e branco que tinha sido deslocada para aquele local por ser natal. A minha vontade era desaparecer, o silêncio e a agressividade que pairava naquela mesa era absolutamente insuportável, mas nada podia fazer, tinha que comer o bacalhau com batatas e as rabanadas. Na televisão viam-se famílias alegres a cantar canções de natal e lindos presentes a serem desembrulhados, na minha boca o bacalhau dava voltas e mais voltas e não o conseguia engolir, sentia um nó na garganta, fazia um esforço para que não me saltassem as lágrimas, mas tudo tinha de continuar.


Quando o meu pai dava por terminado o jantar, sentia um grande alívio, temporário é certo, mas ainda faltava um ano para que tudo se voltasse a repetir.

sábado, 25 de julho de 2009

As cantigas da minha mãe


Sentada no beiral da janela para ver as meninas a brincar na rua, aprendia as cantigas que a minha mãe cantava enquanto me dava a sopa que eu não queria comer “...indo eu, indo eu a caminho de viseu, encontrei o meu amor, ai jesus que lá vou eu...” , tentava enfiar-me mais uma colher de sopa na boca e saía mais uma cantiga “... sebastião come tudo tudo tudo, sebastião come tudo sem colher, sebastião é um grande barrigudo e depois dá pancada na mulher...”, eu acabava por engolir rapidamente a sopa para cantarolar com a minha mãe mais uma cantiga e outra e ali ficavamos a cantar mesmo depois da abominável sopa ter terminado.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Visita ao meu bisavô


Quando ia com o meu pai visitar o meu bisavô, que era o seu avô paterno, levava-lhe sempre uma prenda, uns maços de cigarros da sua marca preferida que o meu pai comprava e me dava, para eu lhe entregar logo que chegássemos a sua casa. Ele fumava uns cigarros pequeninos, que vinham dentro de uma embalagem também pequena feita com um papel branco onde estava escrito o nome da marca em letras vermelhas.


Eu gostava muito de ir visitar o meu bisavô porque a caminho de sua casa passávamos pelas ruas estreitas do centro da vila e pelo calvário, que era um penedo muito grande onde se encontravam três cruzes, um pelourinho e um púlpito, tudo em pedra, e que me deixava sempre curiosa, questionando o meu pai sobre o propósito desse sítio chamado calvário. O meu pai tentava responder à minha curiosidade contando-me histórias de romanos, cristãos, ladrões, perseguidos, que eu adorava ouvir.


O meu bisavô era um homem velhinho e pequenino que vivia numa casa de pedra rodeada por árvores, campos de cultivo e vinha. O seu dia-a-dia era passado nos campos e quase tudo o que comia vinha da sua terra cultivada. Quando a visita ao meu bisavô coincidia com as vindimas, ele levava-nos ao lagar que ficava no piso térreo da casa, para vermos as uvas que ele tinha colhido a fermentarem. Havia um cheiro adocicado no ar e se estivéssemos atentos conseguíamos ouvir um leve murmúrio produzido pela união das suas uvas. Dava-nos sempre a provar o líquido que se produzia na fermentação, era docinho e chamava-se vinho doce e só se podia provar um bocadinho porque fazia dores de barriga.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Desilusão


Vendedor de vinho, foi um dos muitos biscates que o meu pai arranjou extra trabalho principal. Da mesma forma que eu acompanhava o meu pai nas imensas actividades que ele desenvolvia, também o acompanhava nesta, tendo um papel muito importante, era a provadora de vinhos e a que seleccionava o vinho que o meu tinha que comprar.


O meu pai comprava o vinho em Arouca, a sua terra natal, e quem provava os vinhos em primeiro lugar era ele, depois passava-me a mim a caneca de bordo largo para que eu também provasse, no final das provas perguntava-me qual o vinho que eu tinha gostado mais, acabando por comprar aquele que eu tinha escolhido. Esta atitude do meu pai deixava-me muito orgulhosa e muito feliz.


Após a selecção do vinho, eu ia à carrinha quatro ele de cor creme buscar os garrafões para serem enchidos e de seguida, já cheios, voltavam novamente para a carrinha, onde eram devidamente acondicionados para não haver qualquer percalço nas curvas apertadas do caminho. Quando chegávamos a casa, eu voltava a retirar os garrafões cheios e pesados da carrinha e transportava-os para casa, onde o meu pai fazia uma lista das entregas que eu tinha que efectuar no dia seguinte pela tarde depois de regressar da escola, dois garrafões para o senhor Manuel, um garrafão para a dona Tininha, quatro garrafões para o senhor Mário, e a lista continuava infinitamente.


No negócio do vinho do meu pai, eu para além de ser provadora também era distribuidora, e se por um lado a satisfação do meu papel importante de provadora no início desta actividade, me dava alento para carregar durante horas os pesados garrafões, com o passar do tempo a tarefa tornou-se difícil e aberrante, mas não estava autorizada a abandoná-la. O negócio durou algum tempo, já não me recordo quanto, mas o suficiente para começar a sentir-me desiludida com o meu pai, afinal não era sempre um homem bom para mim, também era mau.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Miquinhas do Covelo


Quando os gritos, os choros, os amuos e os argumentos não funcionavam com o meu pai, a minha mãe recorria a estratégias mais subtis e secretas, sendo habitual comentar entre dentes “hei-de te vergar… se não vais a bem vais a mal”, num tom de voz raivoso e ao mesmo tempo desiludido, eu ouvia-a e não percebia o que queria dizer, a única coisa que eu notava era a ausência das discussões entre os meus pais e as saídas para sítios estranhos da minha mãe.


Como era criança acompanhava sempre a minha mãe em todas as suas saídas e quando ela tinha de “vergar” o meu pai íamos a sítios diferentes dos habituais. Assim que o meu pai saía de casa pela manhã para ir trabalhar, a minha mãe vestia-me rapidamente, pegava no saco onde levava umas cuecas e uma camisola interior do meu pai e corríamos todo o caminho até casa da Miquinhas que morava no Covelo e era conhecida pela Miquinhas do Covelo, para quando lá chegássemos não termos muita gente à nossa frente. As pessoas esperavam em fila à porta da casa da Miquinhas, que ficava num corredor com outras portas que pertenciam a outras casas. A minha mãe perguntava quem tinha sido a última pessoa a chegar e colocava-se a seguir na fila e ali ficávamos também à espera. Nesta fila habitualmente reinava o silêncio, de quando em vez ouviam-se sussurros e suspiros de impaciência, e havia uma regra que não se podia nunca transgredir sob pena de ser expulso da fila, que consistia na proibição de cruzar braços ou pernas durante o tempo de espera porque tal acto contribuía para que a Miquinhas não fizesse o serviço com a agilidade desejada e por consequência toda a gente que estava na fila teria que esperar mais tempo para ser atendida.

Chegada a vez da minha mãe, entravamos na casa da Miquinhas, que era uma senhora muito velhinha que estava sentada numa cama com um crucifixo numa mão e rodeada por santos e velas. A minha mãe expunha-lhe a sua aflição, que eram queixas do meu pai e colocava a roupa interior dele à sua frente. A Miquinhas ia ouvindo meio ausente e de um momento para o outro iniciava uma ladainha imperceptível enquanto agitava o crucifixo fazendo o sinal da cruz repetidamente por cima da roupa do meu pai, após uns minutos, de olhos fechados e com uma voz transformada, informava a minha mãe do que se passava com o meu pai e o que ela tinha de fazer para alterar a situação. A minha mãe ouvia tudo muito atentamente, no final agradecia e perguntava quanto tinha de pagar pelo serviço que a Miquinhas tinha prestado, mas esta nunca pedia um valor, dizia que lhe desse o que quisesse e se não tivesse que não desse.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Operação à garganta


Não havia mais nada a fazer, tinha que ser operada à garganta porque não podia continuar a fazer infecções e a tomar antibióticos quase todos os meses. A sentença estava dada. Os meus pais amedrontados, foram comentando com a família e amigos que a menina deles tinha que ser operada, e sempre que tocavam no assunto ao meu pai franzia-se a testa e à minha mãe saltavam-lhe lágrimas de aflição. Assustava-os que algo pudesse correr menos bem, mas no fundo eu acho que o que os assustava verdadeiramente era que pudessem perder-me, e não podiam fazer absolutamente nada, nem mesmo ficar comigo no hospital, pois a única coisa que lhes era permitido era uma visita diária de uma hora.


Os meus pais explicaram-me que tinha de ir tratar o dói-dói à garganta no hospital e que tinha de lá ficar uns dias com uma senhora amiga da minha mãe. Concordei, e diariamente perguntava aos meus pais se era naquele dia que ia para o hospital, estava curiosa, e queria saber o que era isso de ir para o hospital. No dia marcado para o internamento no hospital de santo António, o meu pai e a minha mãe foram-me levar, mas decidiram sair de casa com bastante tempo de antecedência em relação à hora marcada no hospital porque tinham-me prometido levar a ver as montras na rua de Cedofeita. Os meus pais arrastavam-se e eu desinteressada das montras, saltitava a perguntar quando chegávamos, pois a única coisa que naquele momento me interessava era o hospital. Chegámos finalmente, a uma casa muito grande com muitas pessoas nas escadas de três grandes portas, eu ia de mão dada à minha mãe e ao meu pai, olhava atentamente para tudo, queria ver bem o hospital, até que uma senhora pegou na minha mão e simpaticamente perguntou-me o meu nome e devagarinho levou-me para a entrada de um corredor, parei e rapidamente procurei os meus pais, estavam atrás de mim, chorosos, percebi naquele momento que não iam comigo, comecei a chorar e a chamá-los, já tinha visto o hospital e não gostava, queria voltar com eles.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Melhoral


Ia praticamente todos os dias à farmácia comprar Melhoral, que eram umas pastilhas brancas que vinham dentro de uma caixa azul. Cresci a ver a minha mãe a tomar Melhoral para tudo, para as dores de cabeça, as dores de costas, as dores de pernas, as dores de irritação e até para as não dores. Ainda era pequena quando comecei a ir sózinha à farmácia, mas era um recado que gostava muito de fazer porque a farmácia ficava um pouco distante e demorava mais tempo do que ir à loja que ficava ao lado de casa. Geralmente ia por um caminho e voltava por outro, no percurso da estrada em obras abandonada podia observar alguns dos prédios que constituíam o bairro, as suas fachadas com as roupas estendidas nas varandas e janelas, e no percurso do interior do bairro observava as pessoas, a forma como andavam e falavam, o que transportavam. Era como se um caminho fossem as paredes da casa e o outro os seus habitantes, tão diferentes da minha casa, que eu sentia ser melhor, apesar das dores da minha mãe.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Vou fugir


Numa das minhas zangas com a minha mãe, já não sei bem porquê, talvez porque não me deixasse fazer alguma coisa, decidi que não queria continuar com ela. Ia para casa da Bibi, a minha madrinha, onde nunca se zangavam comigo, portanto, estava decidido, ia fugir para casa da Bibi. Amuada e triste, pus-me a pensar como fazer para ir para casa da Bibi, era habitual ir a sua casa muitas vezes, sempre acompanhada pela minha mãe, e como fazíamos o percurso até sua casa a pé eu achava que poderia ir só que não me perderia, embora necessitasse ter cuidado ao atravessar a rua no Carvalhido porque passavam muitos carros, mas de resto não havia grande perigo. Peguei num grande saco amarelo dos supermercados Invictos e enchi-o de coisas que achava necessitar em casa da minha madrinha, que era os brinquedos, troquei de roupa e quando estava preparada para abandonar a minha mãe, ela apareceu subitamente e perguntou-me para onde ia, tendo respondido que ia para casa da Bibi. Seguiu-se uma palmada e os gritos da minha mãe a proibir-me de repetir tal façanha. Tive muitas vezes vontade de fugir, da minha mãe e não só, mas acabei sempre por ficar.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A contar notas


Como o meu pai sempre gostou muito de dinheiro acho que foi procurando trabalhos que o levassem a estar cada vez mais próximo dele, como o de cobrador do banco para onde foi trabalhar. Ia diariamente na sua vespa azul clara bater de porta em porta para cobrar as letras dos empréstimos aos clientes do banco e todo o dinheiro que recebia era metido numa grande pasta de couro castanho-escuro.


Depois do almoço, o meu pai, tinha por tarefa a contagem do dinheiro recebido durante toda a manhã, eu sentava-me à sua frente e em silêncio observava-o a juntar as notas com o mesmo valor em montinhos, desfeitas de vincos, bem esticadas e todas viradas para o mesmo lado, depois pegava num montinho e contava meticulosamente uma nota a seguir à outra, anotando o valor numa folha branca, de seguida pegava noutro montinho de notas de valor diferente do anterior e repetia a mesma operação, fazia isto até ter contado todos os montinhos anteriormente feitos, no final fazia a soma dos valores que foi anotando na folha branca e se por acaso a soma não desse certa com outra soma que tinha feito, tinha que repetir todo o processo. E fazia isto, uma, duas, três vezes e as vezes que fossem necessárias até não haver diferença. Embora esta tarefa pudesse ser aborrecida, eu acho que o meu pai gostava de a fazer, por vezes naquelas contagens repetitivas apercebia-me da imensa satisfação que sentia ao tocar em todas aquelas notas, talvez imaginando que fossem suas, e da delicadeza que empregava quando as guardava.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Descoberta de verão


Os anos foram passando, o meu corpo estava a sofrer transformações que eu tinha vergonha de assumir com a mesma rapidez com que aconteciam, o meu pensamento vagueava por interesses distintos e os rapazes passavam a atraírem-me de uma forma desconhecida, ao mesmo tempo que aumentava o meu desinteresse pelo mosteiro de Arouca e as longas tardes de verão passadas no rio Paiva. Contudo, continuava a ter que acompanhar os meus pais nas suas viagens à aldeia, apesar de não me apetecer, até que num dos piqueniques familiares na serra da Freita deparei-me com um belo rapaz que se banhava nas águas límpidas do rio que por lá passava e tendo ele notado que eu não pertencia àquelas paragens aproximou-se de mim e perguntou-me donde vinha e o que ali fazia, ao que eu respondi entusiasticamente e no final da nossa longa conversa ficou a vontade do reencontro não combinado mas que acabou por ocorrer umas horas depois, numa noite quente de verão nos bancos da praça principal da vila mesmo em frente à confeitaria Arca Doce.

terça-feira, 14 de julho de 2009

A casa das monjas


A casa do meu avô situava-se próxima do centro da vila, por isso os passeios a pé até ao mosteiro de Arouca eram diários. O mosteiro era um dos meus locais preferidos, não só porque se localizava no centro da vila que era onde tudo acontecia, mas porque o meu tio Manel era o cicerone do museu e igreja e em criança era habitual acompanhá-lo nas explicações que ia dando aos grupos de visitantes, que eu seguia a alguma distância, arrastando-me devagarinho de sala em sala observando mais uma vez tudo o que já tinha observado tantas e tantas vezes e escutando as suas histórias sempre iguais que me faziam imaginar as monjas nos seus passeios matinais pelo claustro ou nas suas preces infinitas. Uma das coisas que mais me impressionava na igreja do mosteiro era o caixão em vidro onde está exposto o corpo incorrupto da rainha santa Mafalda, que pela lógica já não devia existir mas que insistia em manter-se inteiro.

domingo, 12 de julho de 2009

O guarda-vestidos


A casa da Bibi era o mundo de todos os prazeres. Tudo o que em casa dos meus pais não podia fazer ali tornava-se possível, só necessitava de um pouco de imaginação. Podia abrir as portas da cristaleira, as gavetas da cómoda, a porta do guarda-vestidos e espreitar para dentro de todos estes compartimentos para ver o que continham. De todos os móveis, o guarda-vestidos era aquele que eu preferia, porque era muito grande e enigmático, sempre que eu abria a sua pesada porta e via os vestidos e fatos pendurados encostados uns aos outros ficava com a sensação que tinha acabado de interromper as suas conversas, achando que mal a voltasse a fechar retomariam as suas cumplicidades. Nunca movia as roupas dos seus sítios porque a rigidez que apresentavam fazia-me parecer que ocultavam segredos, tinha medo de as perturbar pois não sabia o que me poderiam fazer, contemplava-as e tocava-as com as minhas mãos ao de leve como que a querer transmitir-lhes que só estava ali para as admirar. Lentamente cerrava a porta do guarda-vestidos e encostava a cabeça à porta já cerrada à escuta dos seus sussurros.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Piquenique na Serra da Freita


Nos dias quentes de verão íamos fazer piqueniques para a Serra da Freita. Eram passeios que eu adorava, pelo caminho o meu pai explicava-me a diferente flora que nos envolvia, ao subirmos a encosta deparávamo-nos com pinheiros, carvalhos, medronheiros e azevinho e consoante íamos estando mais altos as árvores iam desaparecendo para dar lugar à urze e à carqueja; o meu pai explicava-me ainda que existiam por ali animais ferozes tal como o lobo, o javali, algumas cobras, gatos bravos e eu começava a ficar assustada, mas o meu pai tranquilizava-me dizendo-me que eles estavam na sua casa e que se nós os tratássemos bem seríamos seus convidados e nada nos aconteceria.

Como a viagem era longa íamos fazendo algumas paragens em sítios muito bonitos, um dos que eu mais gostava era uma queda de água muito grande que se chama Frecha da Mizarela, outra das paragens obrigatórias era a Capela da Nossa Senhora da Lage que servia para descansar o motor do carro depois das subidas vertiginosas e onde podíamos avistar a vila da Arouca com o seu magnífico mosteiro. O meu pai levava-me ainda a ver as pedras parideiras, que são umas rochas de tamanhos variados, que expelem pequenas pedras, por isso se chamam parideiras porque o que fazem é comparado ao acto de parir.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Roupa em segunda-mão


Em criança, a minha roupa era feita pelo meu pai ou pela minha tia Mila e como estava sempre a crescer era feita com folga para durar bastante tempo, quando já não dava para esticar mais passava a ser encolhida para que a minha irmã a usasse. Como eu era a filha mais velha, a roupa era sempre feita em primeira-mão para mim, mas a minha irmã já não tinha a mesma sorte, que foi o que aconteceu quando fez a primeira comunhão e levou o vestido ajustado que tinha sido feito para a minha primeira comunhão seis anos antes.


Mais tarde, já crescidas e cada uma de nós com a sua própria roupa, era habitual a minha irmã vestir a minha roupa às escondidas, sem me pedir emprestadas as peças que desejava usar, o que me deixava tremendamente irritada porque nunca tinha partilhado a minha roupa com ninguém, muito menos com a minha irmã, que só a usava quando para mim já não servia. Não sei se o fazia para me irritar e para se vingar de uma boa parte da sua vida vestir roupa em segunda-mão, ou se o fazia porque tinha necessidade de continuar a vestir a minha segunda pele.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A minha mãe foi homem


A minha mãe gostava de se fantasiar no Carnaval, era uma das suas festas preferidas porque podia passar por aquilo que não era e brincar com isso. Num dos muitos Carnavais em que vestiu a pele de personagens que se calhar faziam parte da sua vontade inconsciente, decidiu que queria ser homem. Vestida a rigor passeou-se pelas ruas e jardins da cidade alheando-se dos olhares mais indiscretos.


Porque não era habitual as mulheres vestirem roupas masculinas, a minha mãe por onde passava era o centro das atenções e comentários, até que um polícia que por ali rondava intrigado com tal alvoroço por causa do que ele supunha ser um homem, decidiu abordá-la e pedir a identificação. A minha mãe que inicialmente assumiu a sua postura masculina, quando reparou que o polícia a julgava homem de verdade e começava a esboçar a vontade de a revistar, ficou muito assustada, dizendo-lhe que era uma mulher e que o podia demonstrar, nesse mesmo momento baixou as calças e à vista ficou a saia rodada do vestido que trazia por baixo da indumentária masculina.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Caíste ao poço?


“Caíste ao poço? Sim. E por onde te dava a água, por aqui? Não. Por aqui? Não. Então, por aqui? Sim. E havia quantos metros de água, estes? Não. Então, estes? Sim. E quem te salvou, foi aquele? Não. Foi aquela? Sim. Tens que dar três beijos na ponta do nariz do João.”


Numa roda de raparigas e rapazes colocávamos a cabeça no colo da pessoa que fazia as perguntas e com os olhos tapados tínhamos que responder às suas questões, nunca sabíamos qual a parte do corpo, o número ou a pessoa que seleccionava, quando terminava as perguntas dava-nos a sentença final que tínhamos que cumprir.


Entre risinhos e comentários brincalhões o corpo e as suas sensações iam sendo descobertas, mas eu tinha receio deste jogo porque era tímida e não conseguia dar e receber beijos nas diferentes partes do corpo de rapazes que conhecia mal e sobretudo perante todo o grupo, por isso restava-me ficar como observadora.

domingo, 5 de julho de 2009

Pimenta na boca


Pronunciei as minhas primeiras palavras antes de ter um ano de idade, toda a família ficou contentíssima, e com o objectivo de aumentarem rapidamente o meu vocabulário diziam-me palavras para que eu as reproduzisse, o que fazia com facilidade, deixando todos muito alegres. Os meus padrinhos eram os que mais investiam nesta aprendizagem, e para além de me ensinarem as palavras comuns e correntes também me ensinavam as palavras proibidas, o que deixava o meu pai muito irritado, tendo mesmo ameaçado de que não voltariam a estar comigo se tal comportamento se mantivesse, mas eu já as tinha aprendido e conseguirem que não as dissesse nas alturas menos próprias nem sempre era fácil.


Certo dia vou ao colo da minha mãe no eléctrico que ia apinhado de gente e muito sensatamente digo à minha mãe para se sentar ao que ela responde que não pode porque os lugares estavam todos ocupados, mas eu insistia e repetia infinitamente: - oh mãe senta-te… oh mãe senta-te… Como a minha mãe não se sentava e passou a não dar resposta às minhas ordens, gritei no meio de toda aquela gente que enchia o eléctrico: - oh puta senta-te. Olharam todos para nós muito espantados, a minha mãe ficou muito envergonhada e tentou acalmar-me, dizendo-me que saímos na paragem seguinte.


Já em casa no meio das minhas brincadeiras e sentindo-me contrariada na minha vontade de mexer na cristaleira saiu mais uma palavra proibida. A minha mãe furiosa descarregou finalmente a sua raiva, disse-me que não podia dizer aquelas palavras, pegou em mim, colocou-me no berço e encheu a minha boca com pimenta como castigo. A minha boca ardia muito, eu chorava copiosamente mas a minha mãe não me socorreu.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Às escondidas


Os meus pais convenceram-me que as meninas de quatro anos já não usavam chupeta, por isso, no dia do meu quarto aniversário num acto de coragem e valentia arremessei a minha chupeta para o lixo e nunca mais voltei a usar chupeta em casa dos meus pais, mas tinha muitas saudades.


A minha mãe comunicou à Bibi, que era a minha madrinha, o meu feito e avisou-a que todas as chupetas que existissem em sua casa tinham que ir para o lixo e que não podia dar-me nenhuma chupeta mesmo que eu lhe suplicasse. A Bibi concordou, mas ao ver a minha tristeza, chamou-me a um canto e às escondidas sem nada me dizer deu-me uma chupeta. Fiquei tão contente, mas contive-me porque a minha mãe não podia saber do que estava a passar-se. E assim foram passando os meses, sempre que chegava a casa da Bibi ia buscar a chupeta ao lugar secreto que só eu e ela sabíamos e refugiava-me num cantinho por baixo da cama alta, escondida de tudo e de todos, só com a minha chupeta.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

As peles do bacalhau


Nunca gostei muito do bacalhau cozido que se comia em minha casa no natal, era um bacalhau muito grande e grosso, a que a minha mãe e o meu pai davam muita importância e escolhiam com muito cuidado. Em minha casa só se comia bacalhau daquela envergadura na noite de consoada, no resto do ano os bacalhaus que apareciam eram pequenotes, talvez fossem os filhos daqueles grandes do natal.


Quando o bacalhau era posto na mesa ainda a fumegar, era bem visível o contentamento dos meus pais com a competência do animal, apreciando a grossura das suas postas antes de serem comidas, mas a mim não me atraiam, muito pelo contrário, repeliam-me, mas fazia um esforço para não desagradar e mastigava, mastigava as suas lascas, mas não conseguia engolir, dava voltas e mais voltas na boca e não passava na minha garganta, por isso andava sempre à procura de postas fininhas e como não havia restavam-me as barbatanas.


Comia o bacalhau à mão com mil cuidados, para separar lasca por lasca, retirar as espinhas que pudessem estar entranhadas e para retirar toda a pele. Os meus pais insistiam que exceptuando as espinhas, tudo se comia, mas a mim repugnavam-me as peles que tinham outra cor e uma textura um pouco gelatinosa na boca. Certo dia estava eu na minha minuciosa tarefa de tudo separar quando a minha mãe me disse que era uma pena eu não comer as peles do bacalhau porque eram muito importantes para as meninas ficarem bonitas. Fiquei curiosa, o que teriam de tão especial as peles do bacalhau? A minha mãe disse-me que faziam crescer as maminhas. Não podia acreditar no que ouvia, pois o que eu mais queria era que as minhas maminhas crescessem. A partir desse momento as peles do bacalhau passaram a ter prioridade, para além de comer as peles das minhas postas passei a pedir as peles de todas as postas de bacalhau que estivessem na mesa.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O secador de cabelo


Ia todos os anos acompanhada pelos meus pais e irmã à festa de natal que era organizada pela empresa onde trabalhava o meu pai, era um momento que eu esperava com grande ansiedade durante todo o ano porque era tudo muito bonito e alegre. Assim que chegava à festa recebia saquinhos brilhantes com chocolates, bombons e bolachas de todo o tipo, atavam um enorme balão colorido ao meu pulso para que este não fugisse e ficasse colado ao tecto, depois ia ver o espectáculo dos palhaços, mas o momento que eu mais ansiava acontecia mesmo no fim da festa, que era a escolha de um dos muitos brinquedos que existiam para a minha idade.


Este era um momento bom, mas também difícil, porque tinha de escolher só uma coisa entre muitas que gostaria de ter. Assim que me aproximava dos brinquedos, as senhoras que estavam encarregadas de os distribuir perguntavam-me o que queria, eu olhava para tudo e ficava calada, tornava a olhar e mais uma vez me questionavam, eu com alguma indecisão apontava um brinquedo e imediatamente olhava para o meu pai para saber se ele aprovava a minha escolha, o que habitualmente acontecia, mas um ano, estava neste jogo de aponta e olha e o meu pai interrompe o processo e diz-me: - “não achas melhor o secador? pode fazer jeito… é mais útil.”. Escolhi o secador de cabelo, o meu pai acenou com a cabeça em sinal de aprovação e satisfação e eu fiquei a olhar para os brinquedos não escolhidos. Pela primeira vez saí desiludida e triste da festa de natal.


O secador de cabelo durou anos e anos, nunca avariou, foi sempre ele que secou o meu cabelo durante os imensos anos que vivi em casa dos meus pais.