quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A olhar o infinito


Tinha combinado ir passar o dia ao Mindelo a casa de uma amiga. Apesar de ainda estarmos na primavera os dias já eram quentes, passaríamos o dia na piscina. Encontro marcado com a Paula no apeadeiro da avenida da França às onze da manhã. Precisava de algum dinheiro para as deslocações e talvez ir ao café, portanto, decidi primeiro passar por casa da minha madrinha a fazer-lhe uma visita já que a sua casa não ficava distante da avenida da França e também porque sempre que a visitava ela dava-me algum dinheiro ficando desta forma resolvido o problema do dinheiro.


Assim que cheguei a casa da Bibi, reparei que algo não estava bem, encontrei-a apática, sentada numa cadeira a olhar o infinito, não me falava e praticamente não respondia às minhas perguntas e não me disse para lhe chegar o porta-moedas como era habitual. O tempo passava, tinha que ir ter com a Paula ao apeadeiro para apanharmos o comboio para o Mindelo, mas ao mesmo tempo achava que tinha que fazer qualquer coisa pela Bibi e a única coisa que poderia fazer era ficar com ela e telefonar aos meus pais para que a fossem buscar para a levar ao médico. Não fui capaz de rejeitar a ida ao Mindelo, à hora marcada estava no apeadeiro e passei o resto do dia na piscina sem que a imagem da Bibi a olhar o infinito me saísse da mente.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Estão mal lavadas!


O mais terrível do negócio do vinho era quando o meu pai decidia engarrafá-lo. Eram necessárias muitas garrafas de vidro que o meu pai comprava no farrapeiro, garrafas essas que estavam muito sujas, cabendo-me a mim a tarefa da lavagem. A melhor forma para retirar toda a sujidade daquelas garrafas imundas era deixá-las mergulhadas em água durante umas horas para ir amolecendo tudo o que se encontrava encrostado por dentro e por fora, e como vivíamos num apartamento eu utilizava o recipiente maior que lá existia para pôr de molho o maior número de garrafas, que era a banheira, enchendo-a de água com detergente. Mas as horas de molho não eram suficientes para retirar toda a sujidade, sobretudo a sujidade do interior da garrafa, por isso tinha que utilizar areia grossa que metia para dentro da garrafa junto com água agitando com toda a força que tinha de forma a que o sarro de outros vinhos que ali viveram desaparecesse, não esquecendo os rótulos e a cola do exterior. Era uma tarefa desesperante, a minha mãe e a minha irmã também ajudavam, mas o pior era quando o meu pai chegava a casa e ia inspeccionar as garrafas, uma por uma, e alto e bom som pronunciava o veredicto: “estão mal lavadas, tem que se voltar a lavar”.

domingo, 27 de setembro de 2009

Vou apanhar grilos


Quando estava na aldeia gostava de sentir o entardecer, sentava-me no esteio de granito em frente a casa e ali ficava a ver o sol a esconder-se nas montanhas do fundo. O ar abafado do fim de tarde carregava o cheiro da caruma queimada na lareira da minha avó e aos poucos o chilrear dos pássaros dava lugar ao cântico repetitivo dos grilos que iniciavam o seu reportório de toda uma noite.


O meu tio Adolfo perguntava-me se queria ir apanhar grilos, meio indiferente acabava por o acompanhar. Escolhia uma palhinha no meio de muitas e silenciosamente escutava o cri-cri dos grilos movendo-me muito devagar até ao buraquinho de onde saía a cantoria, depois de observar atentamente a casa do bicho cantor enfiava muito ao de leve a palhinha que fazia com que o grilo saísse. Avisava o meu tio da aparição do pequeno cantor, que rapidamente se prontificava a apanhá-lo e a colocá-lo numa pequena gaiola onde já estava colocada uma folha de alface que lhe serviria de manjar.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Óleo de fígado de bacalhau


Tinha que passar todos os anos pelo martírio de engolir a colher do óleo de fígado de bacalhau. A minha mãe preparava-me com antecedência, uns dias antes da toma dizia-me que ia comprar o “remédio” e eu protestava dizendo que não queria, que não precisava, que não gostava, que não aguentava o cheiro, que me dava vómitos, mas nenhum destes argumentos a demoviam do seu objectivo. Ela tentava convencer-me que não custava nada tomar uma pequena colher daquele óleo que tão bem fazia à saúde e eu contestava que não queria saber do que fazia o óleo e que não tomava. A minha mãe olhava para mim com ar de quem ignora completamente qualquer argumento e insistia que só me fazia bem. Até que chegava o dia em que a minha mãe decidia dar-me o “remédio”, dizia-me para apertar o nariz e abrir a boca onde enfiava a colher do óleo de fígado de bacalhau, logo de seguida eu comia uma laranja para tirar o sabor do óleo que dificilmente desaparecia.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Passeios de domingo à tarde


Ao domingo depois de almoço tínhamos todos que ir passear. O meu pai dizia à minha mãe para preparar qualquer coisa para o lanche porque íamos dar uma volta. Todos enfiados no carro e por uma rua ou por outra a volta ia dar sempre ao mesmo destino, o mar. O local em que parávamos não variava muito, era algures entre a foz do Porto e Matosinhos. Aí chegados, o meu pai ligava o rádio sintonizado no relato de futebol, inclinava para trás o encosto do seu banco que fazia com que eu e a minha irmã tivéssemos que estar mais juntas e passados alguns minutos adormecia embalado pelo futebol que não lhe interessava e pelo som da ondas que iam e vinham. A minha mãe pegava no seu croché que fazia e desfazia e ali se quedava ausente. A minha irmã brincava com o que podia e muitas vezes também adormecia. Eu observava resignada a minha família e tentava imaginá-la diferente, limpava o ressoado dos vidros do carro e mirava o mar. Com o tempo comecei a gostar dos passeios de domingo à tarde, das horas passadas em frente ao mar, onde a minha família se ausentava e eu simplesmente contemplava.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Lesmas negras


Quando passava pelas bermas dos carreiros da rega fazia-o sempre um pouco sobressaltada porque tinha medo de encontrar as lesmas negras que por vezes apareciam no meio das ervas que despontavam no caminho. Mesmo sabendo que elas se moviam muito lentamente, quando me confrontava com uma tinha sempre a mesma reacção, primeiro parava a minha marcha depois arregalava muito os olhos para a observar bem enquanto aumentava a tensão de todo o meu corpo e finalmente desatava a correr o mais que podia sem olhar para trás. Durante algum tempo não voltava a passar por aquele caminho.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A descoberta das sandes americanas


Chegamos finalmente ao Algarve depois de longas horas de carro pela estrada nacional. O meu pai parou o carro junto a um pequeno muro e saímos todos para esticar as pernas e respirar aquele estranho ar morno que nos abraçava suavemente. Abeirei-me do muro e o que vi deixou-me deslumbrada, lá em baixo estava uma pequena praia de areia dourada com o mar de uma cor azul que eu nunca tinha visto, que mais adiante passava a azul esverdeado, sem ondas e com enormes rochas de formas engraçadas que formavam pequenas ilhas.


Íamos para a praia de manhã cedo, a minha mãe levava o almoço que tinha preparado previamente e aí passávamos quase todo o dia, ora ao sol ora à sombra das falésias que tinham entradas para pequenas grutas. Brincávamos na água e com a fina areia fazíamos construções estranhas. O meu pai gostava de observar os estrangeiros porque eram pessoas bastante diferentes de nós, desde a cor dos cabelos às roupas que usavam e sobretudo o que comiam, que foi o que mais curiosidade lhe despertou, tendo passado a dedicar-lhes a máxima atenção quando estes pegavam nos seus embrulhos de papel de estanho. Aos poucos foi descobrindo que dentro daqueles embrulhos havia sandes feitas com pão, alface, tomate, milho, maionese, ovo e por vezes também atum. O meu pai ficou radiante com a descoberta, pareceu-lhe uma óptima invenção pois havia imensos ingredientes saudáveis numa única sandes. A partir daquele momento também passamos a comer sandes embrulhadas em papel de estanho.