domingo, 31 de maio de 2009

Padaria Flor do Monte


Gostava de espreitar para dentro daqueles fornos enormes, quando os padeiros retiravam pequenos pães tostados e quentes com as pás de madeira, que eram uma espécie de colher de concha lisa e cabo muito comprido. Aproximava-me da entrada e o calor que de lá saía queimava-me a cara, ao fundo crepitava a madeira em brasa.

O meu padrinho vestia os seus melhores trajes e diariamente dirigia-se à padaria que se situava em frente à sua casa, onde passava longas horas, parecia que queria moldar a massa da vida como os padeiros faziam com a massa do pão, acho que tinha a esperança de poder voltar a dar-lhe uma forma semelhante à dos seus anos de juventude onde tudo era grandioso e magnífico.

Eu misturava-me com os padeiros e observava atentamente a perícia com que faziam as roscas, as carcaças, as regueifas e acabava por também fazer os meus pãezinhos que colocava delicadamente na pá de madeira, que os introduziria no forno gigante, esse objecto poderoso que iria transformar as minhas delicadas criações em pedaços de massa disforme crescida e corada. Deveria ser uma transformação deste tipo que o meu padrinho procurava, já não aguentando mais aquela sobrevivência arrastada.

sábado, 30 de maio de 2009

Bananas


As bananas eram o fruto que eu mais gostava quando era criança, comi-as com tudo e estavam em primeiro lugar no role de alimentos da minha preferência. Certo dia a minha mãe disse-me que ia às compras e para que eu não chorasse pela sua ausência prometeu que trazia bananas. Fiquei com o meu pai em casa deitada no meu berço que tinha umas pequenas rodas que serviam para o mover pelo solo, a aguardar ansiosamente a chegada da minha mãe e das tão desejadas bananas, até que repentinamente ouvi a sua voz a chamar-me e rapidamente pus-me em pé no extremo do meu berço de rodas a pedir bananas, mas o berço não aguentou o desequilíbrio do peso tendo-se tombado e eu cai no soalho envernizado tendo batido neste com o meu queixo. A aflição dos meus pais era grande, eu gritava e o sangue rapidamente manchava a madeira do soalho envernizado. As bananas tiveram que esperar para serem comidas porque rapidamente fui transportada para o hospital onde muitas pessoas com batas brancas me rodearam e me agarraram para me coserem a carne aberta, que eu impedia com todas as minhas forças.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O segredo


Passava muito tempo à janela a ver as meninas a brincar na rua, jogavam à macaca e saltavam à corda, mas eu não podia juntar-me a elas porque o meu pai tinha dito à minha mãe que não autorizava que eu fosse brincar para a rua. Enquanto o meu pai estava a trabalhar, que era todo o dia, eu pedia à minha mãe para me deixar ir para junto das meninas, mas ela não queria desobedecer ao meu pai, mas eu insistia, pois estava mesmo ali pertinho de casa e sempre que fosse à janela podia ver-me perfeitamente. Acabou por ceder ao meu pedido e quase todos os dias eu ia para a rua brincar sem o meu pai saber. Eu e a minha mãe tinhamos um segredo.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Alfaiate


O meu pai é filho e neto de lavradores, mas nunca sentiu o chamamento da terra, e como as minas de volfrâmio onde o meu avô tinha trabalhado por altura da guerra também não lhe interessavam, decidiu ainda antes de sair da escola primária pedir ao alfaiate da aldeia que o ensinasse naquela arte e assim deu início a um ofício que o ocupou durante muitos anos mas que acabou por descobrir que também não o satisfazia. Esta insatisfação se calhar devia-se ao facto da execução de uma peça ser lenta, passar por várias etapas até estar concluída e os ganhos não serem tão elevados como o meu pai desejava. Por isso, decidiu arranjar outra profissão, mas não deixou a arte de alfaiate que manteve ainda por muito tempo nas horas livres, que eram todas as horas em que não estava no outro trabalho. E assim passava longas horas na máquina de costura singer que tinha um pedal onde eu adorava sentar-me e balançar-me e fazia os moldes e decalques com giz sobre as fazendas que depois eram cortadas com a tesoura que eu não conseguia manobrar de tão grande que era.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Afinal não havia pai natal


No natal o momento mais importante era a chegada do pai natal que trazia os presentes. Na noite do dia 24 de Dezembro, colocava o meu sapatinho em cima do fogão que ficava por baixo da chaminé para que durante a noite o pai natal lá deixasse a prenda e no dia seguinte a primeira coisa que fazia era ir ver o que estava no sapatinho. Mas um ano não havia prenda no sapatinho e muito desiludida fui ter com os meus pais ao quarto e muito triste disse-lhes que não havia prenda no meu sapatinho. A minha mãe tentou animar-me dizendo-me que o pai natal certamente se teria atrasado e ainda não tinha passado lá por casa, o meu pai também tentou animar-me, entretanto a minha mãe saiu do quarto e em seguida o meu pai movimentou-se em direcção à berma da cama, nesse momento ouviu-se um ruído e a minha mãe muito excitada chamou-me e disse-me para ir ver novamente o sapatinho porque aquele ruído parecia ter vindo da cozinha e que se calhar era o ruído da prenda do pai natal a cair no sapatinho, mas a mim tinha-me parecido que tinha sido o meu pai a fazer esse ruído com um sapato no chão. Fiquei desconfiada, fui a correr à cozinha e lá estava a prenda no sapatinho, mas eu tinha a certeza que o ruído que tinha ouvido não era do pai natal mas do meu pai.

terça-feira, 26 de maio de 2009

A Fábrica


Começou a trabalhar aos onze anos de idade como aprendiz de fiadeira. Eram jornadas longas, de mais de doze horas de trabalho, mas viviam-se tempos difíceis e trabalhar era necessário. Toda a ”féria” era entregue à minha madrinha que geria o orçamento familiar com mão de ferro, dando-lhe aos domingos uns tostões para comprar uns pirolitos.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A gaiola das rolas


O meu padrinho fez uma gaiola para as rolas, estava dependurada na parede exterior da casa, onde batia o sol durante a tarde. A gaiola tinha dois andares, era parecida com uma casa de dois pisos, com a porta e as janelas, tendo no seu interior pequenas travessas de madeira a diferentes alturas por onde saltitavam as rolas. Ocupava esta casa-gaiola duas rolas, para mim eram um casal, e eu andava sempre a espreitá-las para ver quando nasciam rolas pequeninas, mas tal nunca aconteceu. Eu achava que elas estavam contentes quando as ouvia cantar e fazia de tudo para que cantassem, dava-lhes comida, imitava-as para que me respondessem, falava com elas e muitas vezes abria-lhes a porta, mas elas nunca saiam, ficavam espantadas a olhar para esse espaço que se abria.

domingo, 24 de maio de 2009

Com o primo não!


O C., filho da tia paterna da minha mãe, que vivia em Lisboa, apaixonou-se por ela no primeiro momento em que a viu, tendo decidido pedi-la em namoro, o que foi aceite pelos meus padrinhos porque ficava tudo na família. A minha mãe achava-o um belo rapaz e aceitou o namoro que era sempre supervisionado pelo meu padrinho, mas com o tempo a minha mãe foi percebendo que o rapaz não estava brincar e que levava a sério a hipótese de casamento. As colegas da fábrica começaram a dizer à minha mãe que não podia casar com o primo, porque era primo direito e que os filhos nasciam malucos. A minha mãe não aguentava a ideia de ter filhos malucos, não a podia suportar e por mais que gostasse do primo não admitia esta possibilidade. O melhor seria mesmo terminar o namoro, que foi o que fez sem grandes demoras.

sábado, 23 de maio de 2009

Um marceneiro fadista chamado Henrique


O meu padrinho chamava-se Henrique e cantava fado vadio para além de ser marceneiro e ter construído muitos dos eléctricos que ainda andam pela cidade, mas quando eu nasci já ele passava muito tempo em casa doente. Cresci a ver o meu padrinho que eu chamava Quique a passar cada vez mais tempo na cama, dias seguidos sem se levantar, excepto no tempo que se seguia ao tratamento que de tempos a tempos fazia no Hospital de Conde Ferreira. Os dias e semanas que se seguiam ao tratamento eram fantásticos, pelo menos para mim porque para ele creio que nem tanto porque ficava com amnésia e tonturas. Quando os sintomas atenuavam e ele sentia uma falsa cura, levava-me à rotunda da Boavista onde íamos jogar à bola e à carris onde aproveitava para fazer uma visita aos colegas e mostrar-me muitos dos eléctricos que tinha ajudado a construir, íamos até à padaria que ficava em frente a casa onde eu podia ver os padeiros a fazer pão e metê-lo no enorme forno de lenha de onde saia muito calor ou então deixava-me pentear os seus cabelos ondulados abrilhantados infinitamente.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Nasci a pedir vinho


Quando a minha mãe estava grávida de mim desejou beber uma garrafa de vinho inteira, mas tinha que ser bebido pela garrafa e de uma só vez, sem paragens. O desejo tinha estas características, contudo não o fez porque tinha vergonha de ficar bêbada, mas ao mesmo tempo também estava preocupada em não cumprir o desejo porque eu poderia nascer “ougada” e com o cabelo em pé, o que efectivamente aconteceu, segundo versões familiares.


Desde tenra idade que sempre que apanhava um copo de vinho o bebia, toda a gente tinha que andar com mil cuidados para que não me fosse parar às mãos vinho, era habitual nas reuniões de família à mesa eu sorrateiramente pegar nos copos e beber o restinho de vinho que ficava no fundo. Era tamanha a minha vontade e sofreguidão pelo vinho que os meus pais já não sabiam o que haviam de fazer até que a minha avó propôs que eu comesse um pão de milho especial que se fazia para dar a “ougados”. Esse pão era confeccionado pela minha avó que à sua feitura acrescentava umas rezas indo a cozer no forno de lenha e depois eu tinha que o comer atrás da porta. Eu adorava estes pãezinhos de milho, comi muitos atrás de todas as portas porque não havia maneira de me passar o gostinho pelo vinho, e a verdade é que nunca passou.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Quero a minha chupeta


Nos meus dois primeiros anos de vida toda a gente achava normal eu gostar tanto da chupeta, mas fui crescendo e esta relação próxima da chupeta mantinha-se o que deixava os meus pais preocupados, afinal quando é que eu largaria a chupeta?


Até que se aproximava o dia do meu quarto aniversário e os meus pais decidiram com antecedência preparar-me para este dia tão importante e combinarem comigo ser o dia em que deixaria de usar a chupeta porque ía fazer quatro anos e era muito vergonhoso as meninas daquela idade continuarem com chupeta. Com os argumentos que os meus pais e familiares me iam dando fui-me convencendo que a partir do dia em que fizesse quatro anos não voltaria a mamar na chupeta. Chegou o dia do aniversário e a minha mãe pegou em mim ao colo e disse-me: - Laidinha, hoje fazes quatro anos, já és uma menina crescida. Eu muito orgulhosa de todo este crescimento retirei a chupeta da boca e arremessei-a para o chão, fazia quatro anos e não mamaria mais na chupeta, era o que tinha combinado com a minha mãe e o meu pai.


Passei muito bem todo o dia, mas à noite vieram as saudades da chupeta e sussurrava baixinho numa ladainha ininterrupta: - se eu não fizesse quatro anos ainda mamava na chupeta mas fiz quatro anos… se eu não fizesse quatro anos ainda mamava na chupeta mas fiz quatro anos …

terça-feira, 19 de maio de 2009

Precisava dos dois


Em criança tentava ser bem comportada, não criar “ondas” porque o ambiente familiar já era demasiado instável.


Não queria que os meus pais se separassem. Mais tarde cheguei a pensar que se calhar era melhor eles separarem-se, mas sentia angústia ao imaginar a minha vida sem os dois. Não queria viver só com um ou com o outro. Nenhum deles me satisfazia em pleno.

domingo, 17 de maio de 2009

Servente de Trolha


O meu pai foi sempre um homem habilidoso e se não sabia como fazer uma coisa tentava aprender, deste modo fazia de tudo, como por exemplo trabalhos de construção civil.


Certo dia decidiu fazer umas grandes obras em casa, derrubar e construir paredes, meter canalizações novas, colocar um tecto falso numa divisão da casa para criar uma espécie de sotão, enfim, era uma obra enorme e era ele que fazia tudo, tendo-me atribuído a tarefa de servente de trolha. O meu pai vestia a pele de construtor ao fim-de-semana e à tarde quando regressava do trabalho e porque o fazia nos tempos livres a obra demorou imenso tempo.


A minha tarefa na obra era do género instrumentista, era eu que lhe chegava os materiais e quem segurava nas madeiras que ele precisava de serrar pois não existiam máquinas eléctricas, era tudo manual. O meu pai explicava-me o que tinha de fazer, como por exemplo, segurar numa tábua que ele estava a serrar, o problema era que por mais que eu tentasse seguir direitinho todas as suas instruções nem sempre saía bem, isto porque, a aplicação da minha força era diferente da dele. Tal divergência impedia a evolução da obra, o que deixava o meu pai muito irritado, a bufar e a gritar furioso com a minha incompetência para as tarefas que me eram destinadas. Não vales para nada, era a frase mais ouvida no meio dos seus desabafos furibundos.


Quando o meu pai estava no trabalho, as minhas tarefas de servente de trolha não cessavam, mas havia uma espécie de despromoção porque deixava a especialidade de instrumentista para me dedicar a uma tarefa indiferenciada, que consistia na recolha do entulho e levá-lo para o contentor do lixo, e assim se passavam horas e horas com baldes de entulho para cima e para baixo.

sábado, 16 de maio de 2009

Não quero ir à missa


Era absolutamente impossível aguentar a missa até ao fim e todos os seus rituais, tais como, benze, ajoelha, senta, levanta, reza, canta, e sobretudo não contestes. O meu pai começou a levar-me à missa em criança e eu gostava, não da missa, mas de ir com o meu pai, ele nem sempre ia à mesma igreja, por vezes ia a igrejas grandes e com muita gente e tudo isso era muito espectacular para mim. Quando terminava a missa o meu pai entregava-me algumas moedas e dizia-me para dar aos pobrezinhos que estavam a pedir na porta da igreja o que eu fazia com empenho. Mas fui crescendo e este ritual dominical repetitivo começou a aborrecer-me e não conseguia de maneira nenhuma identificar-me com aquilo. Eu não conseguia comportar-me como as outras pessoas, tinha vergonha de fazer o que todos faziam, benzia-me muito rapidamente quando tinha início o ritual, sentava-me e ajoelhava-me, mas nunca rezava, cantava, comungava, simplesmente esperava que tudo aquilo terminasse rapidamente.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Bibi


A Bibi era a minha madrinha, nome que lhe atribui em bebé e que se manteve para sempre, sendo o seu verdadeiro nome Adelaide. Também era minha tia-avó porque era irmã do meu avô materno e foi ela que cuidou da minha mãe desde criança porque a mãe dela morreu quando ela nasceu e o pai era casado com outra mulher que não a aceitou por ser filha da amante do marido, por isso a minha mãe era filha de mãe morta e pai incógnito mesmo conhecendo-o. E porque a Bibi teve um único filho que morreu aos poucos meses de vida, praticamente adoptou a minha mãe como filha e a mim como neta e antes de eu nascer rapidamente deixou claro que queria ser minha madrinha com a condição de me pôr o nome Adelaide, o que acabou por ocorrer apesar da oposição do meu pai que queria dar-me o nome de Olga, que era o nome da minha mãe.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Quinta da Mata


Cuidado com esse degrau… está um pouco desfeito, é de terra, tem que se arranjar. Corre uma brisa suave de fim de tarde e ouve-se um jorro de água que cai no tanque grande onde antes a minha bisavó lavava a roupa, água fresca e límpida que vem de uma nascente na montanha, que acredito seja ali próxima, mas quem sabe onde fica, o que se sabe é que é boa água, da que se bebe sem qualquer cautela, é pura e escorre pelo carreiro que a leva até aos pequenos campos que se distribuem por socalcos, que são as leiras como lhe chamava o meu avô aos pequenos campos de cultivo onde tudo se semeava e tudo nascia, desde batatas, milho, couves, cebolas, grelos, e muito mais, as separações destes pequenos campos era feita com videiras donde nasciam umas uvas negras pequeninas com as quais o meu avô fazia vinho, era o vinho da Mata. Mais acima das leiras cultivadas encontrava-se o monte, onde se encontravam muitas árvores de grandezas variadas, para além de algumas darem frutos tão abundantes em número como no seu tamanho que exigiam que fossem devorados.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Limites e Controle


Curiosamente, depois procuro nos meus parceiros este mesmo padrão de relacionamento, em que me possam proporcionar algo de não convencional, mas que seja algo que eu possa controlar, quando sinto que o risco é elevado recuo e passo a ditar as regras. Creio que de uma forma “soft” porque não tenho capacidade de chegar mesmo aos limites, ou melhor de assistir aos limites, deixa-me ansiosa, o que também acontecia no meu relacionamento familiar.

Escolho como parceiro P. que era um pseudo-hippie, pois nos anos oitenta já os hippies tinham passado de moda, mas sempre me senti atraída por essa época, gostava de a ter vivido – a contestação social, a transformação dos valores morais, a liberdade sexual, as drogas (não me atraiam muito porque tinha medo de não controlar os efeitos, tinha o exemplo da minha mãe). Passo a viver com P. uma vida mais ou menos próxima daquilo que eu considerava ser hippie, passo a vestir-me de forma diferente, envolvo-me em movimentos políticos radicais de forma ingénua porque não sabia nada de política para o acompanhar, passo a viajar à boleia de mochila às costas, durmo ao relento, era tudo possível com alguns limites, não me magoar.

Os meus pais falavam do futuro, da importância de ganhar dinheiro, as amigas falavam de ter um espaço próprio, sair de casa dos pais, arranjavam namorados que eu não entendia porque eram demasiado “direitinhos” para mim. Entretanto vou crescendo e as necessidades começam a mudar.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Tudo desaparecia quando voava


Em frente à casa dos meus avós existia um pinhal onde eu gostava de brincar e como fui a primeira neta dos meus avós e assim me mantive por algum tempo, para além de ter sido filha única até aos 6 anos de idade, aprendi a brincar só, inventando personagens para as histórias que construía.


Uma das minhas brincadeiras preferidas era balouçar-me num baloiço improvisado nos pinheiros e para isso utilizava uma corda grossa que o meu avô usava para amarrar o carro dos bois. Com cada ponta da corda dava umas voltas ao tronco do pinheiro terminando em nó apertado para que aguentasse com o meu peso quando me balançasse, de seguida colocava uma manta dobrada na corda para que quando me sentasse não me magoasse nas pernas e pudesse permanecer sentada o maior tempo possível. Com cada uma das mãos segurava a corda que suspendia de cada pinheiro, apoiava as minhas nádegas na manta devidamente equilibrada na corda, dava lanço com as pernas e deixava o meu corpo esticado atirar-se no espaço ficando a oscilar na corda com os olhos cerrados sentia-me a voar ouvindo unicamente o ranger do pinho e o chilrear dos pássaros, a brisa percorria o meu corpo e movia os meus cabelos, tudo o que me rodeava desaparecia e assim me quedava até que novo lanço de pernas se fazia necessário.

sábado, 9 de maio de 2009

Zeza


No último andar vivia a Zeza que era da minha idade, um mês mais nova do que eu, tinha mais ou menos a minha estatura, o cabelo era mais claro que o meu, de um castanho alourado e a pele era clara e aveludada, tinha uns olhos castanhos grandes e era um pouco tímida, falava baixinho e cautelosamente, eu achava-a bonita, mais bonita do que eu. Andávamos as duas na mesma escola e pertencíamos à mesma classe. Apesar de sermos vizinhas não estávamos juntas na sala de aula, estava cada uma numa carteira diferente, acho que foi a professora que decidiu separar-nos para evitar as distracções, eram carteiras de duas pessoas e cada uma de nós tinha outra menina ao seu lado. Tanto eu como a Zeza aprendíamos bem e as nossas provas tinham sempre boas classificações mas eu queria ser melhor do que ela, por isso tentava fazer a letra mais bonita e os desenhos mais espectaculares, eu queria ser a melhor, ela era mais bonita do que eu mas eu era melhor do que ela na escola.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Olha o Passarinho


Impossível continuar a suportar a imobilidade necessária à objectiva fotográfica, impacienta-se a carne e a mente, a curiosidade que inicialmente se impunha deu lugar ao desinteresse e aborrecimento, pois nada de muito interessante deveria sair de algo tão enfadonho. Tudo continuava em movimento, contudo teria de se manter aquele congelamento com o vestido de cor azul celeste que era usado nos dias festivos e as sandálias de couro castanho sobre a erva fresca e o odor da maresia. Mas porque é que não me posso mexer? Pensava eu, é para ficar bem, tinha-me dito o homem da máquina, mas ficar bem em quê? Já não me atrevia a questionar, tinha que estar imóvel e pronto.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Senhora Aninhas


Em frente morava a senhora Aninhas que era hortaliçeira e vendia a couve cegada, os nabos, as pencas, as cenouras e restantes legumes no túnel ao lado da padaria. Diariamente saía de casa às 5 horas da manhã com o seu cesto de vime equilibrado no cimo da sua cabeça para ir ao mercado comprar a mercadoria e deixava a dormir o marido, o senhor Casimiro e o neto, o Tone, que vivia com ela desde pequeno, assim como a cadela já muito velha que se arrastava pelos cantos para além dos inúmeros gatos que povoavam a sua casa e que infestavam a casa com um odor que eu não gostava nada.


A senhora Aninhas era assim como uma avó, mais velha que a minha mãe sempre a dar-lhe conselhos sobre os mais diversos assuntos e a mim tratava-me como se fosse mais uma neta, era cuidadosa e carinhosa e tentava explicar-me as exuberâncias da minha mãe, como que a desculpá-la tentando sempre que ela alterasse comportamentos.


A porta da casa da senhora Aninhas que ficava mesmo em frente à porta da minha casa estava sempre aberta, ainda não sei porque é que a tinha aberta, se era para que as pessoas entendessem que a sua casa seria uma extensão do seu local de venda no túnel onde permanecia das 7 às 12 horas, ou se era um hábito que trazia da sua infância na aldeia de onde era oriunda onde não existiam portas fechadas, mas onde não se entrava sem chamar pelo da casa e sem tirar os sapatos que aguardavam na soleira da porta. Dentro de casa da senhora Aninhas existia a maior das confusões, havia hortaliça por todos os lados, não só no cesto como em cima dos móveis, numa mesa estava acoplada uma máquina de cegar couves que só funcionava se fizéssemos girar uma manivela pondo a rodar a lâmina que cortava as couves que eram introduzidas num cone, os gatos andavam livremente por toda a casa, em qualquer local, mesmo em cima da hortaliça.

terça-feira, 5 de maio de 2009

O Primeiro Carro


O primeiro carro do meu pai era muito pequenino mas cabíamos todos e como era o primeiro era muito acarinhado e bem cuidado. Já não era novo mas tinha boa aparência, eu fui com o meu pai buscá-lo ao antigo dono lá para os lados da Pasteleira e numa subida teimava em andar porque o meu pai tinha carta de condução há pouco tempo e ainda não controlava bem os pedais, mas após alguma hesitação lá fomos, com o meu pai a fazer experiências que nos punham aos solavancos mas que ele dizia que era para ver se estava a travar bem.

domingo, 3 de maio de 2009

Arouca # 4


Eu gostava de dar sempre um passeio pelos campos, seguia pelo caminho de terra para ver o que se passava, umas vezes tinha uma visão geral dos campos, outras nem por isso. No verão, quando o milho já estava alto eu não conseguia ver nada, a não ser milho, habitualmente corria pelo caminho, este caminho era como um túnel que me deixava inquieta, corria com as folhas do milho a tocarem-me aquando da minha passagem. Quando chegava ao segundo campo, era imprescindível ir ver como estava a cerejeira que ficava ao fundo do lado direito. Claro que antes dava uma vista de olhos noutra ramada com uvas americanas. A cerejeira não dava cerejas todos os anos e às vezes nem dava cerejas, mas eu estava sempre à espreita dos seus frutos e ficava tão contente quando via pequenas bolinhas a avermelharem, para além de as comer brincava com elas, pendurava-as nas orelhas a fazer de brincos e improvisava anéis que embelezavam as minhas pequenas mãos.

Nos três campos do meu avô, digo três porque havia como que uma espécie de separação feita pelas ramadas, embora fosse uma área de terreno seguida, aquele a que eu dedicava mais atenção era ao segundo, porque tinha a cerejeira e as uvas americanas, os outros era somente uma passagem. Na primavera eu dedicava alguma atenção a certos locais à procura de morangos que por vezes apareciam, eram escassos, mas de vez em quando lá iam aparecendo.

Uma outra paragem obrigatória era o pessegueiro, era sempre observado atentamente, ficava do lado direito, logo a seguir ao palheiro e antes da entrada nos campos. Dava pêssegos todos os anos, mas demorava imenso tempo a ficarem maduros e eu acabava por os comer ainda verdes o que me deixava a boca muito amarga e cheia de pêlos que custava a sair.

sábado, 2 de maio de 2009

Arouca # 3


A seguir à ramada do lado direito havia um caminho de terra com umas pequenas escadas feitas na terra, que o meu avô arranjava sempre que os degraus deixavam de estar bem presentes. Era um caminho um pouco íngreme, que vinha dar a um outro caminho estreito que acompanhava o carreiro da rega, que só tinha água na altura da rega dos campos. Para não estragar o carreiro, o meu avô tinha feito uma pequena ponte com uma tábua de madeira, a água passava por baixo. Depois de passar esta ponte improvisada andava mais um pouco e ia dar a um local que eu tinha que ter uma atenção especial, até porque era sempre avisada de que não podia ir para esse sítio, era o tanque de água onde a minha avó lavava a roupa, era um tanque muito grande, parecia uma piscina, nunca percebi muito bem donde vinha a água, não havia qualquer torneira, era mais uma dessas coisas inventadas pelo meu avô que fazia com que a água da mina viesse ter ao tanque. Aqui eu andava sempre com atenção redobrada, não podia haver qualquer deslize, eu sabia que era perigoso.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Arouca # 2


Logo pegado ao aido estava o galinheiro, mais uma vez um espaço construído pelo meu avô, era um recanto que tinha dois espaços separados por uma rede de arame, num dos espaços estavam as galinhas que punham ovos e no outro espaço maior estavam as restantes galinhas com os galos e os garnizés. Este era um local que eu visitava sempre e a que estava sempre atenta, não é que as galinhas interagissem comigo, porque não o faziam, mas eu gostava de as contemplar, gostava de observar o seu comportamento e a capacidade que tinham de estar sempre a comer, claro que também lhes dava comida, desde pedaços de broa, milho e cascas de uvas, comiam tudo, às vezes havia pintainhos, desses eu gostava especialmente.
Em frente ao galinheiro passando um caminho de terra, encontrava-se um local muito especial, que estava sempre sob a minha vigilância, tanto de inverno como de verão. Aí encontrava-se uma ramada que tinha uvas americanas. Eu adorava uvas americanas, comia-as quase compulsivamente, eu tinha uma forma muito especial de as comer, pegava na uva com os dedos indicador e polegar depois de arrancá-la do cacho chegava à boca a uva pelo orifício a que estava presa ao cacho e pressionava com os dedos a uva que saltava por este orifício para a minha boca, ficando a pele da uva nos meus dedos. Eu estava sempre muito atenta ao desenvolvimento das uvas americanas, sempre que ia à aldeia fora da época das uvas ia visionar como estavam a crescer, quantos cachos tinham, se havia algum parasita e deste modo conhecia todos os locais nos campos do meu avô onde cresciam uvas americanas e também outros locais que não pertenciam ao meu avô, nos campos vizinhos.