terça-feira, 30 de junho de 2009

Proibido pedir


Os meus pais ensinaram-me desde tenra idade que sempre que saísse com eles para um passeio ou os acompanhasse numa visita a casa de um familiar ou amigo, nunca, mas nunca, poderia fazer pedidos de coisas que visse, como os brinquedos que olhavam para mim nas montras das lojas por onde passávamos ou os chupas e os sugus que me acenavam e faziam crescer água na boca, ou aquelas bolachas e bananas que a tia tinha em casa. Estava proibida de pedir aos meus pais ou a estranhos o que quer que fosse, por isso, sempre que íamos passear só podia olhar e imaginar como me sentiria se tivesse acesso ao que gostaria de ter, ou como ficaria contente se tivesse aquilo que a minha prima tinha acabado de conseguir da minha tia depois de ter feito uma grande birra.


O tempo foi passando e fui-me habituando a nada pedir, as coisas que antes me deixavam a sonhar passaram a ser indiferentes, tinha construído uma arma para me defender da imensa frustração que sentia por ter que reprimir a minha vontade de pedir. Ainda hoje essa indiferença salta de vez em quando e as dificuldades em pedir o que quer que seja mantêm-se.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

A promessa


A minha mãe acreditava em deus e nos santos e quando tinha uma aflição a primeira coisa em que pensava era em pedir ajuda a essas forças que considerava divinas, mas como tudo na vida tem um preço, a minha mãe acreditava que se lhes prometesse alguma coisa, seria mais rapidamente atendida, ou até mesmo ouvida, pois ela sabia por experiência própria que os deuses nem sempre atendiam os seus pedidos. As promessas eram variadas, dependendo de serem grandes ou ligeiras as aflições em que a minha mãe se envolvia, em determinadas alturas eram sete ou quatorze velas a arder no altar do santo padroeiro da aflição, outras vezes a oferenda de uma vela do tamanho da pessoa para a qual ela estava a fazer o pedido, ou então, a promessa de levar a pessoa numa procissão, que foi o que fez comigo quando eu tinha cerca de cinco anos, tendo prometido levar-me vestida de anjinho na procissão da santa rita. Não sei o que me terá acontecido para que a minha mãe tenha feito tal promessa, a única coisa que sei é que nunca foi cumprida.

domingo, 28 de junho de 2009

Não quero apanhar bolos


A minha professora tinha uma régua em cima da mesa que não se escusava em usar quando num ditado dávamos muitos erros, quando chegávamos à sala de aula depois do recreio suadas tendo ela alertado para que isso não sucedesse, quando brincávamos com a colega do lado e fazíamos barulho, quando não fazíamos os deveres e quando ela achava que estávamos a ter comportamentos inadequados. Quando tal acontecia, chamava-nos à sua mesa e em frente a todos as colegas, pedia-nos a mão, podíamos escolher se a direita ou a esquerda, segurava a nossa mão eleita com a sua mão esquerda e elevava a sua mão direita que continha a régua de madeira castanha e infligia-nos o infame castigo, que podia ser um, dois ou mais bolos numa só mão ou em ambas, que ficavam aos piquinhos, vermelhas e ardiam muito durante longos minutos. Quando alguma de nós era chamada para apanhar bolos, toda a classe ficava paralisada, caía um silêncio sepulcral, todos os olhos postos na castigada, como que a censura-la por não ser suficientemente boa.


Eu sentia medo e vergonha de apanhar bolos, não suportava aquela humilhação, por isso os deveres nunca falhavam, os ditados imaculados, as conversas reprimidas e o recreio contido. Desta maneira fui crescendo, amedrontada pelos bolos que não apanhei e sem expressar o que de melhor havia em mim, mas uma coisa não podia evitar nem ninguém conseguia reprimir, que era o contemplar através das janelas verdes da minha sala de aula as nuvens com formas engraçadas e o vai e vem electrizante dos imensos pássaros que povoavam as copas das árvores.

sábado, 27 de junho de 2009

O que queres ser quando fores grande?


Brincava às casinhas onde assumia o papel de dona de casa, tal como a minha mãe, embora não fosse exactamente como ela porque eu achava que ela discutia muito com o meu pai, por isso era mais submissa e aceitava tudo o que o meu marido imaginário dissesse. Também era vendedora de mercearia quando brincava com as minhas vizinhas, vendia-lhes o arroz, os ovos, a fruta e tudo o que estas me pedissem, gostava especialmente deste papel porque eu é que decidia o que tinha ou não tinha para vender e o preço que cobrava. Quando brincava aos médicos, eu fazia sempre de médica, ouvia atentamente as queixas dos meus pacientes e decidia que partes do corpo tinha de ver e qual o tratamento que tinham de fazer, claro que as picas nunca faltavam e era eu que as dava, era uma forma de explorar o corpo das minhas amigas e ver as partes do corpo que estavam sempre ocultas, aquelas que os meus pais nunca me mostravam. Fazia sempre de índio no jogo dos índios e xerifes, construía a minha coroa de penas, que na ausência de penas eram substituídas por folhas de árvores que se uniam umas às outras com pauzinhos de fósforos até terem o diâmetro da minha cabeça e finalmente rematava com uma folha maior que ficava ao alto, e escondia-me para que os xerifes não me prendessem, gostava de ser índio porque era a peça mais importante do jogo e tinha a possibilidade de ganhar ao xerife, o que acontecia muitas vezes porque eu era muito boa em arranjar esconderijos e deste modo podia contrariar o que me ensinavam, de que os mais fracos perdiam sempre.


Já na escola, a minha família perguntava-me o que queria ser quando fosse grande e eu respondia que queria ser professora, e logo a seguir vinha a questão do porquê professora, a que eu respondia que era para bater nos meninos. Estava a aprender com a minha professora que a violência dava poder e parecia que eu queria ter poder, embora não soubesse bem para quê, talvez quisesse ser popular no seio das minhas amigas, o que não acontecia, talvez para combater aquela vergonha que me assaltava e me paralisava, talvez para que notassem que eu existia.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Vamos para a praia


Acordava com a minha mãe a mexer em coisas que emitiam uns sons que não conseguia identificar, estremunhada tentava perceber o que se passava e descobria que ainda era noite, mas havia um cheiro a estrugido que me nauseava, até que finalmente percebia que eram os preparativos para o dia de praia e campo que se aproximava.


O meu pai gostava de chegar cedo à praia porque não queria apanhar trânsito e porque achava que a manhã era a melhor parte do dia para aí permanecer. Eu ia ensonada e tinha como tarefa montar a barraca azul, colocar o pára-vento e a manta e ali ficávamos até à hora de almoço, quando deixávamos a praia e íamos para o pinhal que ficava muito próximo. Aí chegados, preparava-se o espaço, de um lado colocava-se a mesa e os bancos articulados, do outro a manta estendida no solo forrado de folhas secas de eucalipto e amarrava-se a cama de rede vermelha ao tronco de dois pinheiros. A minha mãe ia colocando na mesa os pratos, talheres e copos de plástico onde iria servir o arroz de tomate que estava quentinho como se tivesse acabado de ser feito com as fêveras panadas acompanhado pela laranjada.


E ali estávamos os quatro à volta de uma mesa minúscula, quase de cócoras, mas onde nada era forçado, era como se estivéssemos a brincar ao faz de conta, onde tudo era equilibrado e harmonioso.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Carro de bois


Num dos palheiros estava guardado o carro de bois, que o meu avô usava somente quando ia à quinta da Mata levar ou buscar coisas grandes e pesadas. O carro ligava-se à canga que era uma tábua grande que encaixava na cabeça dos bois, que no caso do meu avô eram vacas, que puxavam o carro que se movia lentamente pelas calçadas estreitas, gemendo baixinho.


Eu seguia de pé em cima do carro, segura à grade para me equilibrar dos solavancos imprevistos e o meu avô caminhava ao lado das vacas, orientando-as no seu trajecto, mas eu ignorava-o, esticando-me o mais possível na minha posição que sentia ser de chefia, dava umas palmadinhas ao de leve no dorso das vacas, imitava os sons que o meu avô fazia para incitar o andamento dos animais e sorria de orgulho a todos que por mim passassem.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Carneiro de S. João


No dia de S. João comíamos carneiro, em minha casa era o único dia do ano em que se comia carneiro. A minha mãe comprava o carneiro, que não era um carneiro mas um anho e não comprava o animal inteiro mas uma parte deste, a uns homens que levavam um rebanho para junto dos prédios onde morávamos, aí construíam uma cerca e colocavam os animais para serem apreciados, era também aí que os matavam e esfolavam. Não se podia comprar o anho quando ainda estava quente, isto é, quando se tinha acabado de matar porque pesava mais. A compra do carneiro era precedida de alguns rituais que a minha mãe cumpria anualmente, tais como, rondar o rebanho uns dias antes para ir conhecendo melhor os animais que estavam para venda, apreçar e regatear, até que acabava por seleccionar aquele que queria e fazia a encomenda, nunca esquecendo a recomendação de que não lhe pesassem o animal quente.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

As iluminações de natal


No natal as iluminações coloridas que adornavam as ruas da cidade seduziam-me, não sei se porque embelezavam as ruas ou porque as ia ver anualmente acompanhada pelo meu pai que me levava pela mão. Contemplava as estrelas e anjos brilhantes que sorriam à minha passagem numa das ruas enquanto a manjedoura com o menino Jesus espreitava noutra e ainda noutra com velas que acendiam e apagavam, sempre com a minha mão apertadinha à mão do meu pai dentro do bolso do seu casaco. Nada mais importava do que ver as luzes de natal de mão dada ao meu pai, sentia-me a menina mais feliz e segura do mundo, não necessitava de mais nada.

domingo, 21 de junho de 2009

A Feira Popular


Ia todos os anos com os meus pais à feira popular nos jardins do Palácio de Cristal, de mão dada ao meu pai e a minha irmã de mão dada à minha mãe, passeávamos nas noites quentes de verão por entre os carrosséis, as barracas das farturas e os matraquilhos. Não falávamos, deambulávamos pelo recinto como sonâmbulos, nada era capaz de nos fazer sobressaltar até ao momento em que o meu pai parecia acordar e oferecia algodão doce.


Nesse momento dava-se início a uma nova etapa no nosso passeio, os ruídos pareciam chamar-me e faziam-me olhar em várias direcções sem fixar o olhar em nada em especial, o açúcar do algodão doce desfazia-se na boca, a tentação por experimentar coisas novas aumentava, como aquelas cestas semelhantes a baloiços que giravam a grande velocidade. Sentia vontade de andar nas cestas, mas não sabia se o meu pai me permitiria, treinava mentalmente o pedido, até que ganhava coragem e perguntava-lhe se me deixava andar naquelas cestas voadoras.


De todos os carrosséis, as cestas talvez fossem as que pareciam menos seguras, mas curiosamente o meu pai cedeu ao meu pedido e quedou-se imóvel a ver-me sobrevoar a feira popular como que a contemplar um pássaro no seu voo de iniciação.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Tenho medo


De noite tinha medo de estar sózinha no meu quarto, tinha medo do escuro e dos monstros, todos os ruídos eram ameaçadores. A única coisa que eu queria era estar próxima dos meus pais, junto deles o escuro não me assustava nem existiam monstros, por isso muitas vezes durante a noite levantava-me da minha cama, saia do meu quarto e ia ao quarto dos meus pais onde os encontrava a dormir, não os acordava nem me metia na cama deles, bastava-me a proximidade, deitava-me no chão ao lado da cama e tranquilamente adormecia.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O rádio


O meu pai chegou a casa com uma caixa amarela e branca com umas letras grandes, fiquei muito curiosa e perguntei-lhe o que era aquilo que ele trazia, olhou-me carinhosamente e disse-me que se eu lesse o que estava escrito na caixa ficava logo a saber. Fiquei um pouco aflita porque andava na primeira classe e ainda estava a aprender a ler e ao mesmo tempo triste porque me parecia que não era capaz de decifrar o que estava ali escrito. O meu pai tendo-se apercebido da minha decepção, sentou-me no seu colo e foi-me perguntando cada uma das letras que compunham a palavra que eu não tive dificuldade em identificar, depois incentivou-me a juntar as letras em sílabas e a vocalizá-las e finalmente ajudou-me a uni-las de forma a formar a palavra RÁDIO. O que estava dentro da caixa amarela e branca com umas letras grandes era um rádio. Olhei para o meu pai com um sorriso de vitória porque tinha conseguido ler a primeira palavra de muitas da minha vida.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Tio Alberto


Um a um, os irmãos do meu pai foram saindo da terra natal, mas contrariamente a muitos conterrâneos, não foram para paragens distantes, mas sim para a grande cidade mais próxima, à procura de uma vida melhor que nenhum deles sabia onde encontrar, e como o meu pai foi o primeiro a dar esse salto, todos os meus tios quando chegavam à cidade iam para junto dele. O meu tio Alberto quando chegou eu deveria ter uns quatro anos e como tinha medo de dormir sózinha, ele passou a dormir no meu quarto e a fazer-me companhia. Não sei em que trabalhava, mas levantava-se muito cedo porque quando eu acordava já não estava no quarto e muitas vezes para que isso não acontecesse eu ia para a cama dele e agarrava-me ao seu pijama para que ele não saísse da minha beira, mas na manhã seguinte tudo se repetia, ele já não estava ali.

sábado, 6 de junho de 2009

O homem do casaco preto


Quando saia da escola não podia demorar-me em brincadeiras, tinha um determinado tempo para chegar a casa e não podia ultrapassá-lo, eram as regras que o meu pai estipulou e não eram discutíveis. Havia um dia ou outro que demorava uns minutos mais porque vinha com as minhas galochas a chapinar em todas as poças que apareciam ou porque os pontapés que eu dava à minha pasta que ia rebolando pela estrada eram mais curtos.


Certo dia a tentação foi maior, as minhas amigas propuseram ir para o parque infantil que ficava mesmo em frente à escola, eu já sabia que não podia ir, mas elas insistiram, era só um bocadinho e eu hesitante acabei por concordar, mas com a condição de só passar uma vez no escorregão e andar no baloiço um nadinha. Pus-me a correr para que desse tempo para tudo e ao atravessar a rua vi uma mota com um homem de casaco preto que vinha na minha direcção a grande velocidade, mas eu achei estar a uma distância que daria para atravessar, mas afinal não dava e a mota do homem do casaco preto bateu-me na cabeça, senti a pressão do embate e mais nada, desmaiei.


Quando recuperei os sentidos estava sentada na entrada de uma casa , rodeada de pessoas, com os meus joelhos vermelhos de mercúrio, a minha mãe em pânico a perguntar-me como me sentia e eu sem saber o que responder porque não percebia bem o que tinha acontecido.


Já em casa descobri que tinha sido atropelada pelo homem do casaco preto que pediu ao meu pai para não comunicar à polícia nem à sua família o sucedido, que pagava todas as despesas necessárias, mas que queria uma indemnização por ter estragado o seu casaco preto.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Máquina do Tempo


Irrompia pela noite o ruído dos passos cambaleantes da minha mãe, eram passos que não tinham propósito, eram passos vomitados por uma noite interrompida que não sabia como seguir. Eu acordava sobressaltada, tinha sempre dúvidas do seu significado, apesar de ocorrer muitas vezes, eu sentia cada uma delas como a primeira e muito ameaçadora.


Os passos da minha mãe estancavam em gritos abafados de angústia e desespero e as vísceras impunham a sua presença expelindo líquidos viscosos e coloridos, enquanto a minha mãe clamava por auxílio terreno e divino que não existia a não ser dentro de si.


Eu estremecia de medo, encolhia-me e tapava a cabeça com os lençóis desejando entrar numa máquina do tempo que me levasse para uma outra dimensão onde tudo fosse equilibrado. Os gritos da minha mãe silenciavam-se e voltava a ouvir os seus passos, agora arrastados, de volta ao quarto e à sua cama e o silêncio da noite impunha-se. Eu retomava os meus sonhos num sono meio desperto.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Por baixo da mesa


As quatro pernas da mesa da sala de jantar confluíam para uma trave de madeira quadrada formando uma espécie de caixa. De gatas passava pelas pernas das cadeiras que rodeavam a mesa e penetrava neste espaço que eu sentia como uma fortaleza. Sentava-me na trave de madeira e silenciosamente contemplava o mundo que as janelas desta fortaleza me ofereciam. Era um mundo diferente, que não tinha mais de um metro de altura, a minha mãe e o meu pai só tinham pernas, a cristaleira e o aparador que estavam ao lado da mesa não tinham tampo, as portas só podiam estar abertas ou fechadas porque não tinham puxadores nem fechaduras, os sons eram como trovões numa noite de verão que nunca se percebe muito bem de onde surgem. Esta fortaleza aprisionava-me de uma forma muito aconchegante e eu aí ficava encolhidinha, em silêncio, como que suspensa, sem querer saber do mundo de tamanho completo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A lóló do meu pai


Havia partes do corpo que os meus pais escondiam, não eram os braços e as pernas, nem mesmo a cabeça, essas podiam-se ver à vontade, eram outras que andavam sempre ocultas.


Eu queria ver e perguntava pela maminha e pela pombinha e lá me indicavam o local, mas mostrar, deixar-me mexer, isso nunca. Comecei a perceber que o melhor era deixar de perguntar e ir estando atenta às distracções. Seguia a minha mãe quando ia ao quarto de banho e espreitava pelo buraco da fechadura, percebia que ela fazia xixi da mesma forma que eu, o que apaziguava um pouco a minha curiosidade, mas com o meu pai já era diferente, fazia xixi em pé e eu não conseguia perceber como é que ele fazia. Perante tal mistério perguntei à minha mãe porque é que o meu pai fazia xixi em pé e ela disse-me que era por ter uma lóló, e que a lóló era uma coisinha, que eu não sabia como era, que o meu pai tinha no meio das pernas por onde fazia xixi.


A partir daquele momento só queria ver a lóló do meu pai, mas ele não me mostrava apesar da minha insistência, e aos poucos fui abandonando esta obsessão e continuei a crescer a imaginar como seria esta parte do corpo dos homens que não se podia ver.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Viva a Revolução


O dia 25 de Abril de 1974 não foi um dia igual aos outros, quando despertei pela manhã, a minha mãe disse-me que tinha havido uma revolução e que eu não podia ir para a escola porque podia ser perigoso, pois ela não sabia muito bem o que era aquela revolução e estava temerosa que algo de mau acontecesse. Mas eu não suportava a ideia de não poder ir para a escola, gostava tanto de aprender e ainda mais da minha nova escola e das minhas novas colegas, que decidi ir, a minha mãe ficou baralhada sem saber bem o que fazer e lá acabou por aceitar.

Saí de casa à hora habitual, vestida com a farda obrigatória do Liceu Carolina Michaelis, que consistia numa bata azul claro que tinha um botão cosido na parte da frente ao nível da cintura, que indicava o ano que frequentava e como era um único botão indicava que eu frequentava o primeiro ano. Fazia diariamente o percurso para a secção do Carolina Michaelis de eléctrico, que me deixava na Praça da República e depois ia a pé pela Rua dos Bragas que terminava mesmo em frente à escola, mas no dia da revolução o eléctrico não aparecia, as pessoas estavam impacientes e não esperavam, seguiam em bandos pelas ruas a falarem umas com as outras de uma forma que eu não percebia se era de contentamento ou de preocupação, mas uma coisa eu percebia, as pessoas não estavam iguais aos outros dias, estavam diferentes, parecia que se moviam com gestos mais amplos, das suas bocas saiam palavras e sons pouco habituais, notava-se uma leveza estranha, parecia que voavam.


Eu juntei-me a estes grupos e fui seguindo o percurso do eléctrico e quando cheguei à Praça da Republica onde se situa o Quartel General deparei-me finalmente com a revolução, e descobri que afinal aquela revolução era uma coisa boa, porque os tanques estavam na rua repletos de militares rodeados de milhares de pessoas, estavam todos contentes, e havia muitas flores, eram cravos vermelhos que eu tão bem conhecia, porque eram as flores que sempre dava à minha madrinha no domingo de ramos.


Quando cheguei à escola a porta verde de madeira estava fechada, afinal a minha mãe tinha razão, tinha havido uma revolução e não havia escola, mas não fiquei triste porque tinha gostado de ver a revolução.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

O meu primo Fredo


Não sei bem porquê, acho mesmo que não existe nenhuma explicação, mas sempre que a minha mãe decidia ir visitar a sua meia irmã, a minha tia Fernanda, que vivia em Contumil, o marido dela estava a compor a soleira da porta, aconteceu tantas vezes que sempre que a soleira necessitava de arranjo os meus tios comentavam que a minha mãe estaria para aparecer.


Numa dessas visitas de soleira desarranjada, a minha mãe trouxe o meu primo Alfredo, a quem chamavamos Fredo, para passar uns dias em nossa casa, o que me deixou contentíssima porque tinha com quem partilhar as minhas brincadeiras. Nesse dia a minha mãe não colocou o meu lugar na mesa de jantar, improvisou uma pequena mesa para mim e para o Fredo e deu-nos ovos estrelados com batatas fritas aos palitos grossos, que era um dos nossos pratos predilectos. Eu sentia que estava tudo perfeito, saboreava devagarinho cada palito de batata frita sarapintado de amarelo de gema de ovo, quando o meu pai regressou a casa do trabalho. Eu e o meu primo sorrimos, queriamos surpreender o meu pai, pois a vinda do Fredo para minha casa não foi programada, mas o meu pai não ficou surpreendido, virou-nos costas e dirigiu-se rapidamente à minha mãe para saber o que estava ali a fazer o meu primo. O meu primo encolhia-se de rejeição e eu encolhia-me de tristeza e desejando que o Fredo desaparecesse imediatamente para que terminasse aquela discussão infindável e incompreensível.


No dia seguinte, o meu primo Fredo regressou a sua casa, e desta vez a minha mãe não ia a casa da minha tia Fernanda em dia de arranjo da soleira da porta.