quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Curva da morte


Rebatiam-se os bancos da carrinha quatro éle bege e enchia-se a mala, agora maior, de garrafões de cinco litros vazios. Eu acomodava-me no banco dianteiro e partíamos em direcção à aldeia. O meu pai tomava o caminho de Lourosa que era mais curto, mas que tinha muitas curvas, por isso quando regressávamos com os garrafões cheios de vinho fazia o caminho de São João da Madeira, que embora fosse mais longo, era menos sinuoso. Num dia de chuva miudinha, à carrinha bege, deu-lhe para fazer patinagem mesmo a meio da famosa curva, conhecida por curva da morte. Em plena curva rodopiámos, rodopiámos, o meu pai agarrou-me com toda a força como que a querer proteger-me do desconhecido e assim nos mantivemos um tempo sem tempo e sem visibilidade até que a carrinha parou. Quando comecei a ver alguma coisa que fizesse sentido, nada mais tinha para contemplar do que a enorme parede amarela com letras vermelhas de uma garagem a poucos centímetros de mim.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Quando for grande vou concordar em tudo com o meu marido


Mais uma discussão, mais um grito, mais umas palavras atropeladas e voltava tudo ao mesmo, separação de cama e de mesa, e mais uma vez eu e a minha irmã éramos despejadas do nosso quarto porque um dos dois ia ocupá-lo, restava-nos aquele sofá-cama de napa vermelho escuro do quarto da televisão, que nem era o pior de tudo, porque o mais insuportável daquelas zangas era a mudez do meu pai e a verborreia histérica da minha mãe, que durava muitas semanas.


Desde muito pequenina que tentava perceber porque é que os meus pais discutiam tanto, não conseguia entender porque é que isto estava sempre a acontecer, mas bem lá no fundo eu achava que a culpa era da minha mãe, só podia ser, porque eu considerava o meu pai um homem maravilhoso, adorava passear e conversar com ele e nunca discutíamos, por isso a culpa era da minha mãe, que não concordava nunca com as suas ideias nem fazia o que ele lhe propunha.


Depois desta reflexão pareceu-me que tinha descoberto a solução para as discussões dos meus pais, e até mesmo para minhas possíveis discussões com o meu marido quando fosse grande, que passava pela minha mãe e eu quando fosse grande concordarmos absolutamente em tudo o que dissesse o nosso marido. Desta maneira, achava eu, estava resolvido este problema. Apresentei esta solução à minha mãe, tentando convencê-la da sua eficácia, mas ela nunca me deu ouvidos e as discussões continuaram eternamente, mais tarde, quando eu já era grande, percebi finalmente que a minha mãe tinha razão, a solução que eu tinha arranjado não passava de uma maravilhosa utopia.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Se calhar não sobrevivia


Via a minha mãe com as mãos na barriga e uma cara de dor, doía-lhe ali e não sabia o que era. Do médico tinha medo, mas este nada lhe disse, franziu a testa e pediu para falar com o meu pai. A minha mãe andava triste sem saber o que tinha, mas adivinhando que não seria nada de bom, decidiu parar de tomar as pastilhas Melhoral e de comer, passando a tomar os remédios que o médico receitou e a beber leite, muito leite. Depois do médico ter falado com o meu pai, este veio falar comigo, precisava de me contar o que tinha a minha mãe, tinha oito úlceras no estômago e a situação era grave, se calhar não sobrevivia. Fiquei confusa com este segredo e quase automaticamente rejeitei este vaticínio, afinal de contas a minha mãe continuava a fazer tudo como dantes, a única diferença era não comer, estar a emagrecer e a ficar com menos cabelo, mas as dores estavam a diminuir e além de mais eu não queria a minha mãe morta. Afinal sobreviveu.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Banquinho vermelho


De pé em cima do banquinho vermelho com os braços pousados no parapeito da janela o tempo não existia. As sardaniscas brincavam às escondidas nas lousas negras do telhado dos currais que estavam mornas depois de um dia de calor estival, ao longe ouvia-se o latido dos cães e as vozes de chamamentos irreconhecíveis, o choro contínuo do tanque estava sempre presente ladeado pelo tapete amarelo de malmequeres. Eu ali ficava a contemplar o vale rodeado pelas altas montanhas, atenta às primeiras nuvens de fumo que irrompiam das chaminés imaginando as pinhas e a caruma a crepitarem nas lareiras de pedra. Ficava tanto tempo que só as dores e as marcas nos braços me despertavam daquele devaneio. Era como se estivesse a saciar uma fome que não tinha fim e que ninguém reconhecia.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Rapaz de companhia


A minha mãe começou a reparar naquele rapaz que espreitava pelo postigo sempre que passava numa das ruas que fazia a pé quando ia trabalhar, mas decidiu não dar importância, até que o rapaz abandonou o refúgio e passou a estar presente na rua, a mostrar-se, mas a minha mãe continuava o seu caminho fazendo de conta que não o via. O rapaz decidiu dar um passo mais arrojado e passou a cumprimenta-la: - Bom dia menina - sussurrava com voz melosa. A minha mãe ignorava-o. Os dias passavam e o cumprimento matinal mantinha-se até que um dia o rapaz perguntou: - Posso fazer-lhe companhia? - A minha mãe não respondeu e o rapaz passou a segui-la até ao trabalho. Passaram-se dias, semanas e o rapaz continuava a segui-la, assim como a esperá-la à saída do trabalho. A minha mãe já sem saber o que fazer com a insistência do rapaz disse-lhe: - Eu não quero nada consigo por isso deixe de me seguir - e o rapaz respondeu - Não tem mal menina, mas como vamos para o mesmo lado faço-lhe companhia. A minha mãe tentava de todas as formas fugir ao rapaz, mas por mais artimanhas que usasse ele não desistia, tendo continuado a acompanhá-la.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

As férias grandes


As férias grandes eram mesmo grandes e eu senti-as insuportavelmente grandes. A minha professora, a dona Gonçalina, dava-nos deveres para fazer durante as férias, tais como cópias, redacções, contas e desenhos, que eu fazia em pouquíssimo tempo e como depois ficava sem nada para fazer, voltava a repetir as cópias com os desenhos e as redacções. Muitas vezes repetia três e quatro vezes os mesmos deveres, tentando sempre fazer a letra mais bonita e os desenhos mais espectaculares, achando que iria impressionar a minha professora e colegas depois das férias.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Recados


Quando a minha mãe me mandava ir à loja do senhor Manuel comprar três ovos ou meio quilo de cebolas ou dois limões ou qualquer outra coisa que lhe fazia falta era uma alegria. Saía disparada de casa aos saltinhos a repetir baixinho o que ela me tinha pedido e com o dinheiro bem apertadinho numa das mãos para não o perder. A loja do senhor Manuel tinha duas portas e eu gostava mais de entrar pela porta que me levava até aos caixotes das frutas e dos legumes do que pela outra que dava para um balcão onde se viam os bacalhaus, chouriços e toucinho em salmoura, porque de frutas e legumes eu era uma entendida, tinha aprendido com o meu avô na aldeia como se plantavam e colhiam, enquanto que de bacalhaus e toucinho nada sabia e também não gostava do odor desagradável que emanavam. Na loja do senhor Manuel esperava pela minha vez para ser atendida, muito caladinha observava tudo o que se passava ao meu redor não me atrevendo a reivindicar a minha posição quando as senhoras astutas faziam de conta que eu era invisível e passavam à minha frente. Esperava pacientemente que o senhor Manuel me perguntasse o que queria, recitando com exactidão o pedido da minha mãe. Regressava a casa pelo caminho do túnel porque tinha ido pelo caminho da esquina, aos saltinhos, levando numa mão o recado e na outra o troco bem apertadinho.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Tapete de pétalas


Apanhava camélias e rosas que depois desfolhava e espalhava pelo caminho e entrada da casa dos meus avós, ficando um tapete de pétalas coloridas muito bonito. Ouvia-se um sino ao longe e em casa a minha avó e as minhas tias davam os últimos retoques na mesa da sala de jantar. O som do sino aproximava-se e quando à distância de um espreitar por entre os pinheiros se via a comitiva, corríamos todos para dentro da sala e colocávamo-nos em sentido à volta da mesa onde se encontrava o pão-de-ló, as amêndoas de licor e de chocolate e o vinho, aguardando o grupo de homens que repentinamente irrompiam pela sala empunhando uma cruz com o cristo que chegavam à boca de cada um de nós para que a beijássemos. Depois da ronda de beijos o meu avô dava uma oferenda ao padre que era sempre dinheiro e oferecia a comida e bebida que se encontrava exposta na mesa que geralmente recusavam. Da forma rápida que apareciam também desapareciam, restava o perfume das pétalas pisadas.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Arroz de feijão malandrinho


Gostava muito de fanecas fritas mas não gostava nada do feijão que nadava no arroz malandrinho que a minha mãe fazia para acompanhar, por isso, comia cuidadosamente o arroz separando para a beira do prato cada feijão que aparecia. Os meus pais elogiavam as muitas qualidades dos feijões que eu não queria saber, nem sequer lhes tocava com a pontinha da língua. Numa das muitas refeições de separação de feijões o meu pai disse-me em voz firme e que não dava para contestar: “os feijões são para se comer, não quero ver nem um na beira do prato”. Resignada, apanhei dois feijõezinhos com o garfo e levei-os à boca começando muito lentamente a mastigá-los e quanto mais os mastigava parecia que mais tinha para mastigar e por mais que tentasse engolir aquela massa farinhenta que tinha na boca, não era capaz, dava-me vómitos. E ali fiquei, muito infeliz, a mastigar com os olhos postos no monte de feijões que ainda tinha para comer, até que a minha mãe disse ao meu pai: “ó Zé deixa lá a menina, não vês que ela não consegue comer os feijões”. O meu pai aceitou a sugestão e eu não voltei a comer feijões.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O sapatinho vermelho


Quando entrei no ciclo preparatório, ocorreram algumas mudanças na minha vida, tais como, começar a andar de transportes públicos sózinha e receber uma semanada, que me deixaram com a sensação de ter crescido. O meu pai deu-me um porta-moedas que tinha a forma de um sapatinho e era feito de um plástico vermelho brilhante e disse-me que era para eu guardar o dinheiro que me dava, que não era mais de vinte e cinco tostões por semana e que eu guardava cuidadosamente dentro do sapatinho. O meu pai aconselhava-me a poupar o dinheiro e a não gastá-lo mal, mas eu não sabia o que é que ele queria dizer com gastar mal, pois a única coisa que eu comprava com aquele dinheiro era uns rebuçados em forma de limõezinhos de cor esverdeada com sabor a limão, uns chupas e umas chicletes Pirata, num quiosque que ficava no passeio do lado direito da rua dos bragas quando se seguia em direcção à rua de cedofeita.

domingo, 4 de outubro de 2009

As pastilhas dos nervos


Saía da catequese quando vejo o meu pai dentro da carrinha quatro L de cor creme a acenar-me para que eu entrasse rapidamente. Estranhei o seu aparecimento, ainda por cima de carro, afinal de contas o meu pai só andava de carro ao domingo da parte da tarde quando íamos dar um passeio e nunca de manhã. Assim que entrei na carrinha, ele disse-me que íamos ao hospital porque a minha irmã tinha comido as pastilhas dos nervos. Não percebi muito bem o que isso significava, mas a minha mãe que ia sentada no banco da frente com a minha irmã ao colo estava com cara de aflição e tentava a todo o custo segurar na minha irmã que se agarrava ao volante, puxava a alavanca das mudanças e esforçava-se por abrir a porta do carro em andamento. Quando chegamos ao hospital a minha irmã foi entregue aos médicos que a levaram rapidamente para uma sala onde não podíamos entrar. Enquanto esperávamos pela devolução da minha irmã, a minha mãe chorava, o meu pai deambulava mudo pela sala de espera e eu muito quieta e calada observava-os.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A bicicleta


Pedi ao meu pai uma bicicleta, ele disse-me que se passasse de classe me dava uma. Passei para a classe seguinte e ele não me deu a bicicleta. Perguntei-lhe pela bicicleta e ele respondeu que eu tinha que crescer um pouco mais e que me dava a bicicleta quando passasse para a quarta classe. Passei para a quarta classe e ele não me deu a bicicleta. Perguntei-lhe pela bicicleta e ele disse-me que quando fizesse o exame da quarta classe me dava a bicicleta. Fiz o exame da quarta classe e ele não me deu a bicicleta. Não voltei a perguntar pela bicicleta e ele nunca me deu a bicicleta.