domingo, 4 de abril de 2010

Os filmes da sua vida

Via com a minha mãe os filmes da sua vida, a televisão passava-os em épocas festivas e tardes aborrecidas, ela emocionada antecipava as falas e os cantares. Riamos que nos fartávamos. Os penteados da minha mãe tinham parecenças com os das actrizes dos filmes. Quando o filme terminava, a minha mãe suspirava e cantarolava baixinho as cantigas.
Herminia Silva canta o "Fado da Sina" extraído do filme de Henrique Campos "Um Homem do Ribatejo"

terça-feira, 9 de março de 2010

Rir ou não rir


Nunca o via rir muito, ao meu pai, mesmo quando aconteciam coisas que faziam rir ele esforçava-se para não o fazer, e quando tinha dificuldades em manter a seriedade da cara só lhe saía um arredondamento dos cantos da boca e um olhar mais rasgado. Sem perceber muito bem se rir era bom ou mau, porque o meu pai não ria e a minha mãe fartava-se de rir, comecei a estar atenta ao riso para saber quando podia rir. Descobri que o meu pai ria na aldeia, em casa do meu avô, quando se juntava com os irmãos e restante família, também ria bastante com os colegas do trabalho e ainda ria mais com os chefes; enquanto a minha mãe ria em quase todas as circunstâncias, com as vizinhas, na padaria e até mesmo sózinha em frente ao espelho quando se maquilhava. E assim, aprendi a rir de acordo com a proximidade, quando estava com o meu pai ria quando reparava que ele começava a esboçar um sorriso ou quando se ria abertamente e quando estava com a minha mãe ria quando tinha vontade e sempre que me apetecia mesmo que não houvesse motivo, quando estava com ambos a seriedade impunha-se, era salva pelas gargalhadas trapalhonas da minha mãe que me faziam rir e que tanto irritavam o meu pai.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Frutos


Quase todas as árvores que existiam nos campos do meu avô davam frutos comestíveis. Logo à entrada do primeiro campo havia uma que dava pêssegos e mesmo ao lado estava a dos figos, as das maçãs e das peras ficavam em frente aos currais dos porcos e das vacas, nas traseiras da casa, eram umas árvores muito grandes; ao fundo do segundo campo ficava a das cerejas e ainda havia as árvores das ameixas brancas e ameixas roxas e a das ginjas, mas ficavam longe, na quinta da mata, onde eu não podia ir sozinha. De todos os frutos, os que eu mais gostava era das cerejas, aquelas bolinhas vermelhas emparelhadas que eu resistia em comer para poder enfeitar as minhas orelhas, os meus dedos e tudo aquilo que suportasse os graciosos pares. Na verdade, os figos eram o único fruto que não me interessava, não sei bem porquê, se calhar porque o achava feio, nem me atrevia a prová-lo.
Para mim as árvores tinham que ter sempre frutos, não percebia que só os tivessem numa determinada altura do ano, e tinham que os ter sempre maduros prontos a serem comidos, por isso, não ligava ao que o meu avô me dizia “não apanhes a fruta que ainda está verde”, pois sempre que eu via um fruto por mais pequeno que fosse, estava pronto a ser apanhado e devorado, exceptuando os figos que não gostava e as cerejas que não estivessem vermelhinhas, tudo o resto era para ser colhido e comido, não sendo de espantar, que de madrugada eu devolvesse à natureza a imaturidade que povoava as minhas entranhas. A minha mãe acordava estremunhada com os meus apelos de aflição e no meio de mais uma muda de roupa de cama dizia em voz baixa “eu não te disse para não comeres a fruta verde, faz-te mal à barriga”.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Nandita


Tinha sido padeira, a Fininha, agora era epiléptica, davam-lhe ataques, sobretudo quando se enervava, caía para o chão, esticava muito o corpo e torcia as mãos num sentido que não dava jeito, revirava os olhos para dentro de si e cerrava a boca com tamanha força que parecia que receava que a fala lhe fugisse, mas a boca tinha que ser aberta para não comer a língua, por isso era-lhe posto sempre qualquer coisa entre os dentes para evitar a fechadura da boca. O marido da Finhinha era o senhor Luís, um homem pacato e sorridente que saía todos os dias de madrugada com a marmita na mão a caminho da fábrica de metalurgia lá para os lados da Circunvalação.


A Fininha e o senhor Luís tinham dois filhos, um casal, a Nanda e o Luís. O rapaz era uma cópia perfeita do pai, sempre de dentes arreganhados, levava a vida o melhor que podia, depois de uns anos de estudo esforçado foi trabalhar para ganhar algum dinheiro, que entregava todo em casa. A Nanda, era a grande aposta da família, tinha uns longos cabelos loiros, olhos muito azuis, pele clarinha e corpo proporcionado, não era gorda nem era magra, era aquilo que se esperava de uma rapariga que era considerada a mais bonita do prédio e que a mãe, a Fininha, trazia sempre muito arranjadinha, a sua Nandita, como ela a tratava, era para aí uns seis anos mais velha que eu e era a grande mandona das brincadeiras da miudagem. A Nandita era um misto de menina bem comportada, sempre com um sorriso na boca, muito amável e prestável e de menina malvada que mantinha o seu adorável sorriso quando os miúdos eram derrotados nas brincadeiras em que apostavam ganhar.


A minha mãe sentia-se mais segura em deixar-me ir brincar para a rua quando lá estava a Nandita, mas eu sentia-me intimidada, aquela vontade incontrolável de partilhar das brincadeiras de rua esmorecia, a minha mãe insistia para eu ir, eu encolhia-me, até que a minha mãe tomava a pior das decisões, chamava a Nandita e perguntava-lhe se me deixava ir brincar com ela, e eu lá acabava por me juntar ao grupo, muito envergonhada, esperando as ordens da Nandita.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Depósito ambulante


O meu pai não suportava incertezas. Uma das que mais o irritavam era os gastos de gasolina do carro, não aguentava que o carro tivesse vontades, e gastasse uns dias cinco litros e outros seis a fazer o mesmo percurso, e por mais que perguntasse aos mecânicos, o valor que lhe davam era aproximado, e isso para o meu pai não servia, ele precisava de valores exactos, para ele não existiam aproximações, só exactidão.


Para tirar as teimas, decidiu fazer umas medições à sua maneira. Comprou um bidão de plástico branco de dez litros e com uma caneta de feltro preta de ponta fina fez as marcações de meio litro, um litro, um litro e meio, dois litros, e assim por diante até aos dez litros. Para isto usou uma garrafa de vidro de meio litro, que enchia com água e vertia para o bidão que estava apoiado numa superfície plana sem qualquer declive, depois da água deixar de fazer ondinhas dentro do bidão, apontava o bico da caneta de feltro preta à linha feita pela água e fazia um traço muito direitinho seguindo-se a inscrição – 0,5 – voltava a encher a garrafa com água e vertia-a novamente para dentro do bidão, depois da água se acalmar fazia mais um traço recto, um pouco maior que o anterior e à sua frente escreveu – 1,0 – e assim continuou meticulosamente até à última inscrição no bidão – 10,0.


A rolha do bidão que era de plástico não servia para o propósito da média dos gastos, teria que ser de um material que desse para furar e não deixasse passar ar, nada melhor que a cortiça, tendo substituído a rolha de plástico por outra de cortiça do mesmo tamanho e furou-a com todo o cuidado de forma a permitir que um tubo de plástico passasse à justinha. Também era preciso que o tubo chegasse quase ao fundo do bidão e que não enrolasse, sendo necessário um tubo que fosse de um material rígido o suficiente para permanecer hirto, mas ao mesmo tempo maleável para passar pelo buraco que o meu pai fez por baixo do porta-luvas que dava acesso à área do motor e que ia encaixar numa peça de metal donde o meu pai já tinha retirado o tubo que ligava o depósito da gasolina ao motor do carro, e que tinha tapado com uma espécie de tampinha feita com um pedaço de madeira.


O carro do meu pai passava assim a ter dois depósitos de gasolina, um que lhe pertencia de origem e outro que lhe foi imposto, que era ambulante e que ia entre as pernas da minha mãe.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A casa da Florinda


A casa da Florinda era muito diferente da minha casa, por ter quatro quartos era diferente, por ficar num rés-do-chão era diferente, por lá viverem seis irmãos era diferente, por tratarem o pai e a mãe por você era diferente.

A mãe da Florinda era padeira, transportava uma canastra na cabeça repleta de pão que era distribuído por todas as casas que o compravam, pela manhã saía para trabalhar tão cedo que eu nunca a via, ainda estava a dormir, mas via-a muitas vezes regressar com a canastra vazia à espera do amanhecer seguinte. O pai da Florinda trabalhava em alguma coisa que eu nunca descobri, nunca o via sair para ir trabalhar, ainda estava a dormir, mas via-o muitas vezes regressar com passos incertos como se o estivessem a enganar.

Em casa da Florinda as vozes eram sussurros e os olhares fugiam para a frincha do quarto onde o pai tentava acertar os passos. Não se falava do pai nem se falava para o pai, era como se aquele pai não existisse, era como se tivessem nascido sem pai. Eu tinha pena da Florinda, sempre achei que ela gostava de ter um pai diferente, mas nunca me atrevi a perguntar-lhe. Também não conseguia imaginar o que é que podia brotar da boca daquele pai alto, feio e vermelhusco, que muitas vezes fazia chorar a Florinda e os irmãos de dor e vergonha.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Colete de varas de ferro


Mal sabia a minha mãe que aquele movimento corriqueiro iria marcar o resto da sua vida, ao baixar-se para pegar em mim ao colo, os seus ossos estalaram e não voltou a poder erguer-se, quedando-se prostrada a meus pés. Eu não voltaria ao seu colo sem que ela fizesse uma delicada operação à coluna, nada mais havia a fazer. Procurou o melhor especialista e avançou para a aventura. Mas correu mal a operação, a culpa foi das radiografias, que enganaram o doutor, que era um verdadeiro especialista, mas foi enganado, deveria ter feito uma coisa e fez outra, mas nada que não se pudesse compor na segunda operação, dizia o doutor, que a minha mãe não quis mais ouvir porque outro grande especialista lhe tinha dito que se operação voltasse a correr mal ficaria entrevada, por isso, depois de quase um ano acamada e ter reaprendido a andar decidiu continuar a viver com a coluna desarranjada.
Fartou-se do colete de varas de ferro que lhe punham a coluna direita, mas que achatavam os peitos e tiravam as curvas e arremessou-o para um canto do guarda-vestidos, mas quando as dores apertavam, voltava a espartilhar-se com promessas de não mais o abandonar.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Prendas de Natal


Voltar à escola depois das férias de natal não era nada fácil, porque a Maria, a Luísa e a Teresa exibiam orgulhosamente as suas roupas novas e descreviam ao pormenor a enorme quantidade de prendas que tinham recebido, assim como quem as tinha dado e ainda as prendas que tinham oferecido à mãe, ao pai, aos irmãos, à madrinha, ao padrinho, àquela amiga de infância, ao avô, à avó, aos primos da aldeia e restante família.


Na primeira semana de aulas depois do natal, não se falava de outra coisa que não fosse as prendas recebidas e oferecidas. Eu mostrava-me sempre muito interessada na descrição dos pormenores, chegando mesmo a explorar os pormenores dos pormenores, porque enquanto elas gastavam um tempo infinito a explicar e a mostrar as suas prendas eu ia adiando os pormenores das minhas falsas prendas, mas acabava sempre por chegar a minha vez, e claro, não podia ficar para trás, por isso, usava toda a minha imaginação, afinal de contas não tinha oferecido nenhuma prenda e só tinha recebido duas prendas da minha madrinha. Quase todos os anos lhes dizia que a minha família insistia em dar-me coisas úteis, tais como roupa interior, pijamas e coisas para o enxoval, prendas que não tinha que mostrar, descrevendo com imenso entusiasmo e pormenorizadamente todos os falsos presentes que tinha oferecido à minha mãe, ao meu pai, à minha irmã, à minha madrinha, ao meu padrinho, à minha avó, ao meu avô, à minha tia Mila, ao meu primo Bilo e restante família.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pinheiro de natal


Costumava ser uma pequena árvore com os ramos simétricos e muito redondinho, muitas vezes surripiado de um pinhal qualquer, cujo tronco era enfiado num vaso com terra e colocado em cima de um banco disfarçado na sala de jantar ao lado do móvel grande.


A Bibi, dava-me todos os anos, bolas de vidro brilhantes de muitas cores para pendurar no pinheiro de Natal, que a minha mãe juntava às bolas e fitas coloridas que estavam guardadas na caixa de cartão rectangular e que pertenciam a enfeites anteriores. Eu só as podia observar, nem pensar em tocar-lhes porque as podia deixar cair e partiam-se, dizia a minha mãe, mas a verdade, é que ela era incapaz ou não sabia como partilhar o imenso prazer que sentia ao adornar o pinheiro com aqueles mágicos objectos. Passávamos uma tarde inteira a travestir o pobre pinheiro, eu sentada no chão ao lado da tentadora caixa, ia dizendo à minha mãe onde podia ficar melhor um ou outro enfeite, aproveitando a sua distracção para ir mexendo nas fitas, nos anjinhos, na manjedoura, e claro, nas proibidas bolas coloridas. A minha mãe dava o toque final a toda aquela maquilhagem com pequenos pedaços de uma substância branca que parecia algodão, que segundo ela, imitava os flocos de neve, que eu nunca tinha visto.

domingo, 29 de novembro de 2009

O Jesus está a ralhar


Não percebia porque é que nalgumas noites escuras se viam luzes e se ouviam sons que pareciam pedras aos trambolhões, a minha mãe assustada corria a fechar rapidamente todas as persianas e dizia-me que aqueles estrondos era a voz de Jesus, que estava zangado, e por isso estava a ralhar, e sempre que soava mais um grito de fúria ela estremecia e murmurava de si para si “Ai meu deus… nossa senhora de Fátima nos acuda”. Mas o meu pai não se deixava impressionar com a zanga de Jesus, e vendo que eu me escondia sempre que o céu se revoltava, decidiu abrir uma persiana contra a vontade da minha mãe e sentou-me no parapeito da janela, dizendo-me “Não precisas de ter medo da trovoada, é muito bonito, vou-te explicar o que é…”.


A partir daquele dia, quando havia trovoada, eu e o meu pai saltávamos para a janela para ver as acrobacias dos raios que iluminavam o céu escuro e ouvir os trovões, dava uns minutos ao meu pai para se concentrar e esperava pelo vaticínio, umas vezes a trovoada estava longe e vinha na nossa direcção, outras afastava-se, outras estava tão longe que não se ouvia, outras estava mesmo por cima. Eu, muito atenta, ouvia as explicações do meu pai e chamava a minha mãe para se juntar a nós, mas ela não respondia, escutava aflita as repreensões de Jesus prometendo não voltar a fazer asneiras.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

As mãos do meu pai


Gostava das mãos do meu pai, grandes, brancas e muito limpas. Costumava vê-lo cortar as unhas com o corta-unhas que estava guardado na mesinha de cabeceira do seu quarto, e limar as arestas mais angulosas. Não havia pai de nenhuma vizinha que tivesse as mãos tão bonitas como as do meu pai, eu achava mesmo que os pais das minhas vizinhas não tinham mãos, eram homens tristes, desesperados, que sentiam que não sentiam, transformando-se em amputações cambaleantes; enquanto o meu pai ostentava aquelas mãos decididas e vencedoras que se adaptavam na perfeição a tudo em que tocassem, com a certeza de que era capaz de mudar o mundo. A mim bastava-me ter a minha pequena mão envolvida pela sua para que todos os medos desaparecessem.

domingo, 22 de novembro de 2009

Num fim de tarde em que a Florinda corria para casa


Esperava ansiosamente a chegada do meu pai com a televisão, que vinha muito bem acondicionada numa grande caixa de cartão grosso de cor bege acastanhada. Em casa já estava tudo preparado para a sua chegada, no quarto do sofá tinha sido colocado o móvel novo onde se colocaria o aparelho, que iria ter um quarto só para si.


Logo que a vi gostei dela, parecia uma janela de madeira envernizada, que tinha no canto inferior esquerdo um conjunto de quatro pequenos cilindros pretos que se pressionavam fazendo com que desaparecesse uma imagem e aparecesse outra, como se fechasse e abrisse a janela muito depressa num fim de tarde em que a Florinda corria para casa a avisar a mãe que o pai vinha bêbado; um pouco mais abaixo encontravam-se mais três pequenos cilindros pretos que se rodavam para um lado e para o outro, e que faziam com que a imagem ficasse toda negra ou toda clara e brilhante, como quando o sol batia no vidro da janela e não me deixava ver se a minha mãe estava a dar a volta do túnel terminando com a minha amedrontada espera.


Descobri que esta janela especial, de que eu tanto gostava, que parecia ter o poder de conseguir diminuir as minhas dores, afinal não passava de um embuste. Respirávamos as suas imagens para não asfixiarmos quando nos olhávamos. A minha mãe e o meu pai passaram a discutir menos e a distanciarem-se cada vez mais.

domingo, 15 de novembro de 2009

É menina


Ao meu pai restava-lhe esperar no pátio, não sabendo o que fazer para que o tempo corresse, decidiu desmontar as peças da motorizada para as lubrificar não conseguindo montá-las sem que sobrassem porcas e parafusos. A parteira interrompeu a charada e disse-lhe “é menina”. Eu tinha acabado de nascer numa tarde quente de Julho, na casa onde os meus pais viviam, na rua do Zambeze.


A minha mãe quando me viu ficou impressionada com a minha fragilidade, não sabendo o que fazer comigo, colocou-me na cama, ao seu lado, e pediu que lhe servissem uma canja porque estava esfomeada. A família e vizinhos, rapidamente ocorreram a casa para conhecer a bebé que acabava de nascer, e comentavam “Que menina tão bonita!”. A minha mãe sorria e pensava para si, “Bonita! Não é nada bonita, tem muitas peles, parece uma velha.”

sábado, 14 de novembro de 2009

Numa tarde de Julho quando regressava a casa


Às vezes tinha dúvidas se estaria viva ou morta, ficava muito quieta e tentava escutar o vaivém do pouco ar que usava, continuava a respirar, estava viva, mas era como se estivesse morta. Quase todos os dias desejava que morresse, porque já não aguentava ver o seu corpo imóvel a apodrecer ao meu lado, evitava tocar naquela carne morna branca amarelada e na cabeleira rasa e desgrenhada. A minha mãe insistia para que eu falasse com a Bibi, a custo colocava a minha cabeça em frente ao seu olhar mortiço e sem saber bem o que dizer a uma moribunda, perguntava-lhe como se sentia. A Bibi mexia os lábios, mas da sua boca não saía qualquer som, desistia deste esforço infrutífero e olhava-me. Eu não necessitava de qualquer palavra sua, bastava-me a voz dos seus olhos que repetia incessantemente tudo o que eu já tinha ouvido milhares de vezes.


Numa tarde de Julho, quando regressava a casa do liceu, a minha mãe disse-me que a Bibi estava à minha espera, precisava de ver-me antes de morrer. Aproximei-me dela, coloquei a minha cabeça em frente à sua e chamei-a, “Bibi...Bibi...” ela abriu os olhos e fitou-me, e com o maior esforço deste mundo conseguiu emitir uns sons que deveria corresponder a palavras que eu não consegui entender, mas que traduzi por “Gosto muito de ti”. Fechou os olhos e morreu.

domingo, 8 de novembro de 2009

Lugar seguro


Ouvia a chuva a cair lá fora, o vento abanava o vidro da janela, as árvores gesticulavam com força, e eu enfiada no meu pijama de feltro acomodava-me entre aqueles lençóis de flanela às riscas partilhados com a minha irmã. No quarto ao lado estavam depositados os corpos dos meus pais, inertes e silenciosos. Nada mais necessitava, em plena felicidade, adormecia.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Conquistar o mundo


Naqueles momentos sentia que um dia podia conquistar o mundo, guardava muito bem o monte de notas apertadinhas pelo elástico dentro do envelope e com ar seguro e confiante entrava no banco onde as deixaria depositadas. Cada passo, cada gesto, era pensado ao pormenor para que não ocorressem falhas, o objectivo era a perfeição, que levaria o meu pai ao contentamento pleno. Nada me fazia mais feliz do que o orgulho que o meu pai sentia de mim, mesmo sem o explicitar, eu sentia-o, o que me ajudava a crescer e a perder o medo do mundo.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Curva da morte


Rebatiam-se os bancos da carrinha quatro éle bege e enchia-se a mala, agora maior, de garrafões de cinco litros vazios. Eu acomodava-me no banco dianteiro e partíamos em direcção à aldeia. O meu pai tomava o caminho de Lourosa que era mais curto, mas que tinha muitas curvas, por isso quando regressávamos com os garrafões cheios de vinho fazia o caminho de São João da Madeira, que embora fosse mais longo, era menos sinuoso. Num dia de chuva miudinha, à carrinha bege, deu-lhe para fazer patinagem mesmo a meio da famosa curva, conhecida por curva da morte. Em plena curva rodopiámos, rodopiámos, o meu pai agarrou-me com toda a força como que a querer proteger-me do desconhecido e assim nos mantivemos um tempo sem tempo e sem visibilidade até que a carrinha parou. Quando comecei a ver alguma coisa que fizesse sentido, nada mais tinha para contemplar do que a enorme parede amarela com letras vermelhas de uma garagem a poucos centímetros de mim.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Quando for grande vou concordar em tudo com o meu marido


Mais uma discussão, mais um grito, mais umas palavras atropeladas e voltava tudo ao mesmo, separação de cama e de mesa, e mais uma vez eu e a minha irmã éramos despejadas do nosso quarto porque um dos dois ia ocupá-lo, restava-nos aquele sofá-cama de napa vermelho escuro do quarto da televisão, que nem era o pior de tudo, porque o mais insuportável daquelas zangas era a mudez do meu pai e a verborreia histérica da minha mãe, que durava muitas semanas.


Desde muito pequenina que tentava perceber porque é que os meus pais discutiam tanto, não conseguia entender porque é que isto estava sempre a acontecer, mas bem lá no fundo eu achava que a culpa era da minha mãe, só podia ser, porque eu considerava o meu pai um homem maravilhoso, adorava passear e conversar com ele e nunca discutíamos, por isso a culpa era da minha mãe, que não concordava nunca com as suas ideias nem fazia o que ele lhe propunha.


Depois desta reflexão pareceu-me que tinha descoberto a solução para as discussões dos meus pais, e até mesmo para minhas possíveis discussões com o meu marido quando fosse grande, que passava pela minha mãe e eu quando fosse grande concordarmos absolutamente em tudo o que dissesse o nosso marido. Desta maneira, achava eu, estava resolvido este problema. Apresentei esta solução à minha mãe, tentando convencê-la da sua eficácia, mas ela nunca me deu ouvidos e as discussões continuaram eternamente, mais tarde, quando eu já era grande, percebi finalmente que a minha mãe tinha razão, a solução que eu tinha arranjado não passava de uma maravilhosa utopia.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Se calhar não sobrevivia


Via a minha mãe com as mãos na barriga e uma cara de dor, doía-lhe ali e não sabia o que era. Do médico tinha medo, mas este nada lhe disse, franziu a testa e pediu para falar com o meu pai. A minha mãe andava triste sem saber o que tinha, mas adivinhando que não seria nada de bom, decidiu parar de tomar as pastilhas Melhoral e de comer, passando a tomar os remédios que o médico receitou e a beber leite, muito leite. Depois do médico ter falado com o meu pai, este veio falar comigo, precisava de me contar o que tinha a minha mãe, tinha oito úlceras no estômago e a situação era grave, se calhar não sobrevivia. Fiquei confusa com este segredo e quase automaticamente rejeitei este vaticínio, afinal de contas a minha mãe continuava a fazer tudo como dantes, a única diferença era não comer, estar a emagrecer e a ficar com menos cabelo, mas as dores estavam a diminuir e além de mais eu não queria a minha mãe morta. Afinal sobreviveu.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Banquinho vermelho


De pé em cima do banquinho vermelho com os braços pousados no parapeito da janela o tempo não existia. As sardaniscas brincavam às escondidas nas lousas negras do telhado dos currais que estavam mornas depois de um dia de calor estival, ao longe ouvia-se o latido dos cães e as vozes de chamamentos irreconhecíveis, o choro contínuo do tanque estava sempre presente ladeado pelo tapete amarelo de malmequeres. Eu ali ficava a contemplar o vale rodeado pelas altas montanhas, atenta às primeiras nuvens de fumo que irrompiam das chaminés imaginando as pinhas e a caruma a crepitarem nas lareiras de pedra. Ficava tanto tempo que só as dores e as marcas nos braços me despertavam daquele devaneio. Era como se estivesse a saciar uma fome que não tinha fim e que ninguém reconhecia.