quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Miquinhas do Covelo


Quando os gritos, os choros, os amuos e os argumentos não funcionavam com o meu pai, a minha mãe recorria a estratégias mais subtis e secretas, sendo habitual comentar entre dentes “hei-de te vergar… se não vais a bem vais a mal”, num tom de voz raivoso e ao mesmo tempo desiludido, eu ouvia-a e não percebia o que queria dizer, a única coisa que eu notava era a ausência das discussões entre os meus pais e as saídas para sítios estranhos da minha mãe.


Como era criança acompanhava sempre a minha mãe em todas as suas saídas e quando ela tinha de “vergar” o meu pai íamos a sítios diferentes dos habituais. Assim que o meu pai saía de casa pela manhã para ir trabalhar, a minha mãe vestia-me rapidamente, pegava no saco onde levava umas cuecas e uma camisola interior do meu pai e corríamos todo o caminho até casa da Miquinhas que morava no Covelo e era conhecida pela Miquinhas do Covelo, para quando lá chegássemos não termos muita gente à nossa frente. As pessoas esperavam em fila à porta da casa da Miquinhas, que ficava num corredor com outras portas que pertenciam a outras casas. A minha mãe perguntava quem tinha sido a última pessoa a chegar e colocava-se a seguir na fila e ali ficávamos também à espera. Nesta fila habitualmente reinava o silêncio, de quando em vez ouviam-se sussurros e suspiros de impaciência, e havia uma regra que não se podia nunca transgredir sob pena de ser expulso da fila, que consistia na proibição de cruzar braços ou pernas durante o tempo de espera porque tal acto contribuía para que a Miquinhas não fizesse o serviço com a agilidade desejada e por consequência toda a gente que estava na fila teria que esperar mais tempo para ser atendida.

Chegada a vez da minha mãe, entravamos na casa da Miquinhas, que era uma senhora muito velhinha que estava sentada numa cama com um crucifixo numa mão e rodeada por santos e velas. A minha mãe expunha-lhe a sua aflição, que eram queixas do meu pai e colocava a roupa interior dele à sua frente. A Miquinhas ia ouvindo meio ausente e de um momento para o outro iniciava uma ladainha imperceptível enquanto agitava o crucifixo fazendo o sinal da cruz repetidamente por cima da roupa do meu pai, após uns minutos, de olhos fechados e com uma voz transformada, informava a minha mãe do que se passava com o meu pai e o que ela tinha de fazer para alterar a situação. A minha mãe ouvia tudo muito atentamente, no final agradecia e perguntava quanto tinha de pagar pelo serviço que a Miquinhas tinha prestado, mas esta nunca pedia um valor, dizia que lhe desse o que quisesse e se não tivesse que não desse.

4 comentários:

  1. Pois é Sérgio, parece que hay... pelo menos a minha mãe não tinha qualquer dúvida.

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  2. Este teu blog é uma caixa de pandora ! isto é o mínimo que posso dizer... não páras de surpeender o mundo com as tuas aventuras! Continua a desfiar o fio de Ariane que isto há-de levar a algums sítio mágico...

    bjs

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  3. Obrigada João. Quando é que nos mostras alguns dos teus escritos?
    Bjs

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