domingo, 29 de novembro de 2009

O Jesus está a ralhar


Não percebia porque é que nalgumas noites escuras se viam luzes e se ouviam sons que pareciam pedras aos trambolhões, a minha mãe assustada corria a fechar rapidamente todas as persianas e dizia-me que aqueles estrondos era a voz de Jesus, que estava zangado, e por isso estava a ralhar, e sempre que soava mais um grito de fúria ela estremecia e murmurava de si para si “Ai meu deus… nossa senhora de Fátima nos acuda”. Mas o meu pai não se deixava impressionar com a zanga de Jesus, e vendo que eu me escondia sempre que o céu se revoltava, decidiu abrir uma persiana contra a vontade da minha mãe e sentou-me no parapeito da janela, dizendo-me “Não precisas de ter medo da trovoada, é muito bonito, vou-te explicar o que é…”.


A partir daquele dia, quando havia trovoada, eu e o meu pai saltávamos para a janela para ver as acrobacias dos raios que iluminavam o céu escuro e ouvir os trovões, dava uns minutos ao meu pai para se concentrar e esperava pelo vaticínio, umas vezes a trovoada estava longe e vinha na nossa direcção, outras afastava-se, outras estava tão longe que não se ouvia, outras estava mesmo por cima. Eu, muito atenta, ouvia as explicações do meu pai e chamava a minha mãe para se juntar a nós, mas ela não respondia, escutava aflita as repreensões de Jesus prometendo não voltar a fazer asneiras.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

As mãos do meu pai


Gostava das mãos do meu pai, grandes, brancas e muito limpas. Costumava vê-lo cortar as unhas com o corta-unhas que estava guardado na mesinha de cabeceira do seu quarto, e limar as arestas mais angulosas. Não havia pai de nenhuma vizinha que tivesse as mãos tão bonitas como as do meu pai, eu achava mesmo que os pais das minhas vizinhas não tinham mãos, eram homens tristes, desesperados, que sentiam que não sentiam, transformando-se em amputações cambaleantes; enquanto o meu pai ostentava aquelas mãos decididas e vencedoras que se adaptavam na perfeição a tudo em que tocassem, com a certeza de que era capaz de mudar o mundo. A mim bastava-me ter a minha pequena mão envolvida pela sua para que todos os medos desaparecessem.

domingo, 22 de novembro de 2009

Num fim de tarde em que a Florinda corria para casa


Esperava ansiosamente a chegada do meu pai com a televisão, que vinha muito bem acondicionada numa grande caixa de cartão grosso de cor bege acastanhada. Em casa já estava tudo preparado para a sua chegada, no quarto do sofá tinha sido colocado o móvel novo onde se colocaria o aparelho, que iria ter um quarto só para si.


Logo que a vi gostei dela, parecia uma janela de madeira envernizada, que tinha no canto inferior esquerdo um conjunto de quatro pequenos cilindros pretos que se pressionavam fazendo com que desaparecesse uma imagem e aparecesse outra, como se fechasse e abrisse a janela muito depressa num fim de tarde em que a Florinda corria para casa a avisar a mãe que o pai vinha bêbado; um pouco mais abaixo encontravam-se mais três pequenos cilindros pretos que se rodavam para um lado e para o outro, e que faziam com que a imagem ficasse toda negra ou toda clara e brilhante, como quando o sol batia no vidro da janela e não me deixava ver se a minha mãe estava a dar a volta do túnel terminando com a minha amedrontada espera.


Descobri que esta janela especial, de que eu tanto gostava, que parecia ter o poder de conseguir diminuir as minhas dores, afinal não passava de um embuste. Respirávamos as suas imagens para não asfixiarmos quando nos olhávamos. A minha mãe e o meu pai passaram a discutir menos e a distanciarem-se cada vez mais.

domingo, 15 de novembro de 2009

É menina


Ao meu pai restava-lhe esperar no pátio, não sabendo o que fazer para que o tempo corresse, decidiu desmontar as peças da motorizada para as lubrificar não conseguindo montá-las sem que sobrassem porcas e parafusos. A parteira interrompeu a charada e disse-lhe “é menina”. Eu tinha acabado de nascer numa tarde quente de Julho, na casa onde os meus pais viviam, na rua do Zambeze.


A minha mãe quando me viu ficou impressionada com a minha fragilidade, não sabendo o que fazer comigo, colocou-me na cama, ao seu lado, e pediu que lhe servissem uma canja porque estava esfomeada. A família e vizinhos, rapidamente ocorreram a casa para conhecer a bebé que acabava de nascer, e comentavam “Que menina tão bonita!”. A minha mãe sorria e pensava para si, “Bonita! Não é nada bonita, tem muitas peles, parece uma velha.”

sábado, 14 de novembro de 2009

Numa tarde de Julho quando regressava a casa


Às vezes tinha dúvidas se estaria viva ou morta, ficava muito quieta e tentava escutar o vaivém do pouco ar que usava, continuava a respirar, estava viva, mas era como se estivesse morta. Quase todos os dias desejava que morresse, porque já não aguentava ver o seu corpo imóvel a apodrecer ao meu lado, evitava tocar naquela carne morna branca amarelada e na cabeleira rasa e desgrenhada. A minha mãe insistia para que eu falasse com a Bibi, a custo colocava a minha cabeça em frente ao seu olhar mortiço e sem saber bem o que dizer a uma moribunda, perguntava-lhe como se sentia. A Bibi mexia os lábios, mas da sua boca não saía qualquer som, desistia deste esforço infrutífero e olhava-me. Eu não necessitava de qualquer palavra sua, bastava-me a voz dos seus olhos que repetia incessantemente tudo o que eu já tinha ouvido milhares de vezes.


Numa tarde de Julho, quando regressava a casa do liceu, a minha mãe disse-me que a Bibi estava à minha espera, precisava de ver-me antes de morrer. Aproximei-me dela, coloquei a minha cabeça em frente à sua e chamei-a, “Bibi...Bibi...” ela abriu os olhos e fitou-me, e com o maior esforço deste mundo conseguiu emitir uns sons que deveria corresponder a palavras que eu não consegui entender, mas que traduzi por “Gosto muito de ti”. Fechou os olhos e morreu.

domingo, 8 de novembro de 2009

Lugar seguro


Ouvia a chuva a cair lá fora, o vento abanava o vidro da janela, as árvores gesticulavam com força, e eu enfiada no meu pijama de feltro acomodava-me entre aqueles lençóis de flanela às riscas partilhados com a minha irmã. No quarto ao lado estavam depositados os corpos dos meus pais, inertes e silenciosos. Nada mais necessitava, em plena felicidade, adormecia.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Conquistar o mundo


Naqueles momentos sentia que um dia podia conquistar o mundo, guardava muito bem o monte de notas apertadinhas pelo elástico dentro do envelope e com ar seguro e confiante entrava no banco onde as deixaria depositadas. Cada passo, cada gesto, era pensado ao pormenor para que não ocorressem falhas, o objectivo era a perfeição, que levaria o meu pai ao contentamento pleno. Nada me fazia mais feliz do que o orgulho que o meu pai sentia de mim, mesmo sem o explicitar, eu sentia-o, o que me ajudava a crescer e a perder o medo do mundo.