domingo, 30 de agosto de 2009

Os aviões


Ia com o meu pai ao aeroporto ver os aviões, subíamos a escadaria que dava acesso à varanda que ficava virada para a pista e aí ficávamos a observar os aviões que chegavam e partiam, as manobras que faziam, as escadas que lhes punham por onde saiam ou entravam as pessoas. A varanda estava sempre cheia de gente, alguns chorosos e outros nervosos, muitos atiravam o último beijo de muitos anos de separação e ficavam ali petrificados até o avião desaparecer entre as nuvens. Todo aquele reboliço assustava-me, os motores faziam muito barulho e estremecer o chão, mas eu com as minhas mãos a tapar os ouvidos, meio encolhida e encostada ao meu pai via aquelas máquinas ganharem lanço na pista e erguerem-se nos céus. Ouvia atentamente o meu pai explicar que os aviões transportavam as pessoas para locais muito distantes onde não se podia ir de carro nem de comboio.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A máquina de costura Singer


O meu pai chegou a casa com um objecto de plástico duro e cor bege, parecia uma pequena mala de viagem, era muito pesado e eu não conseguia adivinhar o que era. Colocou-o em cima da mesa da sala de jantar e percebendo a minha curiosidade, pressionou um pequeno botão que permitiu abri-lo mostrando o seu conteúdo. Era uma máquina de costura singer eléctrica e portátil. Logo de seguida determinou qual o sítio da casa onde ficaria arrumada, que era ao lado do móvel da sala de jantar encostada à parede por baixo da janela.


Fui crescendo e já não gostava das roupas confeccionadas pela minha família, queria as roupas bonitas que via nas montras das lojas e parecidas com aquelas que as minhas amigas usavam, mas eram caras e como eu achava que o meu pai não me daria dinheiro para as comprar decidi aventurar-me nas lides da costura, com o manual de instruções da máquina de costura singer e com o que aprendi em todos os anos que observei o meu pai a costurar, fui construindo o melhor que consegui o biquini às flores, as calças azulão, o macacão de cetim preto, o vestido cor-de-rosa, as saias floridas e até os sacos à tiracolo.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O rapaz espécie de príncipe


Todos os passeios da minha mãe eram feitos na companhia dos tios que a criaram, e como a minha mãe era uma rapariga alegre tudo o que fosse festa e romaria era do seu agrado, como os bailes de Carnaval no Palácio de Cristal onde uma vez um simpático e elegante rapaz se aproximou dela e dos tios pedindo autorização para lhes oferecer um picolé, cujo consentimento foi dado com satisfação, tal era a delicadeza do rapaz. Passaram toda a noite na companhia do amável desconhecido que dançou pela madrugada fora com a minha mãe e que no final se ofereceu para os levar a casa no seu espectacular automóvel confessando a intenção de novo encontro nos dias seguintes. A minha mãe sentia-se uma cinderela assustada, achava que não servia para o rapaz porque não pertencia à sua condição e apesar da insistência dos tios decidiu não voltar a encontrar-se com aquele rapaz espécie de príncipe. Como não atendia o telefone, o rapaz decidiu montar guarda na porta de sua casa, obrigando a minha mãe a usar os seus dotes de disfarce para que pudesse passar por ele sem ser reconhecida, o que aconteceu diariamente durante uma semana, a minha mãe passava rente aquela espécie de príncipe envergando luto carregado com os olhos postos no chão como se a luz do dia lhe fosse insuportável. Ao fim daquela semana a minha mãe não voltou a ver o rapaz espécie de príncipe mas guardou sempre dentro de si aquele possível caso de amor.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Tudo Bom


Em casa da Bibi havia sempre sugus com sabor a morango, ananás e laranja, chupa-chupas com formas variadas e cobertura de baunilha e chocolates embrulhados em papel amarelo brilhante a imitarem moedas de ouro antigas e ainda pequenos guarda-chuvas de chocolate compacto que eu tanto adorava.


Assim que aí chegava a primeira coisa que eu fazia era ir directa à cristaleira, onde a Bibi guardava toda a doçaria, e verificar se havia tudo aquilo que eu tinha idealizado a caminho da sua casa, e se por acaso faltasse um doce que me apetecia, pedia à Bibi uma ou duas moedas para o ir comprar ao Tudo Bom, que era uma loja muito pequenina que ficava numa rua paralela à rua onde morava a Bibi, mesmo em frente à linha do comboio e que eu considerava um paraíso. No Tudo Bom havia de tudo, rebuçados de todos os sabores, caramelos, chupas, chocolates, pirolitos, sugus, estando tudo devidamente arrumado nuns grandes frascos transparentes.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A lavagem do automóvel


Lá em casa éramos quatro humanos e um automóvel que era tratado quase como humano, tal era o cuidado que o meu pai tinha com ele. Durante a semana estava parado no mesmo lugar com a sua capota cinzenta que o protegia do calor, da chuva e do pó; ao sábado e ao domingo eram os dias das voltinhas até à foz ou à aldeia. As segundas-feiras era o dia do banho e a pessoa responsável por essa tarefa era eu. O ritual era sempre o mesmo e não havia margem para erros. Primeiro sacudia os tapetes, de seguida limpava os estofos, volante, e tudo o que fosse de plástico, couro ou imitação de couro e estivesse no seu interior com um pano húmido não esquecendo os vidros e o espelho retrovisor com detergente limpa-vidros e jornal para que não ficasse qualquer dedada ou embaciado. Com o interior do carro perfeitamente limpo, seguia-se a parte exterior, cuja limpeza inicialmente consistia numas baldadas de água para retirar poeiras mais grossas que pudessem riscar a pintura, passando para o ensaboamento de toda a chaparia e vidros terminando nas jantes e face exterior dos pneumáticos, a secagem com pano fino e devidamente limpo era a parte final de todo este processo. Com o automóvel a brilhar era chegada a hora da colocação da capota cinzenta que não era feita de qualquer maneira, posta sempre da frente do carro para trás e depois para os lados, ajustando bem os elásticos para que todo o carro ficasse bem protegido. No fim desta tarefa eu suspirava de alívio, ainda tinha uma semana pela frente até à próxima lavagem.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A primeira palavra


Eu era uma bebé tranquila, chorava pouco, contemplava o mundo que me rodeava com curiosidade e quando balbuciei a primeira palavra era ainda tão pequenina que os meus pais ficaram espantados, o que já não aconteceu com os meus primeiros passos que tardaram em serem dados com segurança e firmeza. A palavra mãe foi das primeiras que aprendi, dava-me muito jeito porque sempre que a mencionava a minha mãe atendia-me sorrindo e perguntando o que queria; outra das palavras iniciais foi zé que repetia constantemente na presença do meu pai, mas que ele teimava em contrariar fazendo com que eu aprendesse a substituir o zé por pai o que para mim não deveria fazer sentido porque ele era o zé da minha mãe e era também o meu zé. E fui aprendendo outras palavras e a dar nome às coisas, mas o meu pai continuava a ser zé, apesar da sua tristeza, comentava amuado com a minha mãe “ela a ti chama-te mãe e a mim chama-me zé”.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O meu tio e os peixes


Entre as muitas fotografias do saco amarelo que me punham a sonhar, a do meu tio Alberto com os peixes transportava-me para paragens longínquas. O meu pai tinha-me dito que ele tinha ido para África, para a guerra, tinha ido num barco muito grande que demorou várias semanas a lá chegar. Eu até conhecia bem o barco, porque no saco amarelo havia um postal com um belíssimo navio no meio de umas ondas muito azuis que o tio Alberto nos enviou, onde dava conta de que estava bem e com muitas saudades. Em África permaneceu durante muito tempo e de vez em quando mandava-nos fotografias suas em que estava sempre muito feliz, acho que o fazia para atenuar o pavor daqueles que o amavam.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A prima Lena


A Lena era prima do meu pai e minha prima em segundo grau, morava com a tia dela que também era tia do meu pai e minha tia em segundo grau e que eu tratava por tia da Senhora da Hora porque vivia nesta localidade. Apesar da Lena ser alguns anos mais velha do que eu, era uma rapariga pequenina que tinha um olhar brincalhão e um sorriso permanente num rosto sardento. O que eu mais gostava quando íamos visitar a tia da Senhora da Hora, para além da broa com manteiga que comia sempre, era de me enfiar no quarto da minha prima Lena a ouvir as suas histórias de fadas, príncipes, lobos maus e tudo o que ela inventasse. Ela contava todas aquelas histórias com tal convicção que muitas vezes eu não sabia se ela estava a falar verdade ou a brincar e por mais que as ouvisse nunca me aborreciam, porque ela as adaptava fazendo com que parecessem sempre diferentes e sempre maravilhosamente fantásticas.

domingo, 9 de agosto de 2009

Jogo sem bola


No jogo sem bola não havia bolas, éramos todos bolas. Podíamos ser seis, dez e até mesmo vinte bolas. Não éramos chutados por ninguém, tínhamos pernas, braços, estratégia e capacidade de decisão para nos esquivarmos da bola que nos fazia frente e passarmos pela baliza da outra equipa e assim marcar um ponto como se fosse um golo, mas se a caminho da baliza fossemos travados pela bola da outra equipa éramos eliminados, ganhando o jogo a equipa que conseguisse eliminar todas as bolas da outra equipa. Este jogo era um dos meus favoritos porque eu era matreira e corria muito, conseguindo marcar muitos pontos e ficar até ao fim do jogo.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Liberdade e comando


O meu pai fez um banquinho de madeira que acoplou à parte da frente do assento da sua vespa azul clarinho para que eu viajasse com ele de forma mais confortável e segura. Nas nossas viagens curtas e longas eu ia sentada no banquinho de madeira com os pés apoiados no estrado da vespa e as mãos bem firmes no guiador, estando o meu pai sentado mesmo atrás de mim envolvendo-me com os seus braços. Eu adorava andar na vespa com o meu pai, com o vento a dar-me na cara e aquela sensação de liberdade e comando.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Moscas


Aquelas terríveis moscas, as da aldeia do meu pai, aquelas que picam o gado que está no andar térreo da casa e quando se passeiam pelo andar superior como não têm vacas nem porcos para atacar, mordem as nossas pernas, os nossos braços e tudo aquilo que puderem, não nos restando outro remédio senão agitarmos todo o nosso corpo como se estivessemos constantemente com convulsões, sendo muitas vezes necessário recorrer a palmadas porque a agitação nem sempre as assusta. Um dos meus passatempos preferidos nas tardes dos domingos escaldantes de verão, era observar as moscas a tentarem devorar o meu pai e os meus tios que tentavam dormir a sesta após o almoço familiar. Chegava a contar mais de cinquenta moscas pousadas nos seus corpos suados, e eles completamente desmaiados de sono, lutavam com estes inimigos invencíveis que mesmo por cima de lençóis brancos insistiam no ataque.